(Folha de S. Paulo, 16/01/2015) A recém-estabelecida relação entre infecção de mulheres grávidas pelo vírus zika e ocorrência de microcefalia traz de volta o debate sobre descriminalização do aborto.
Já há notícia de casais que recorrem ao procedimento –a rigor, ilegal. Não será surpresa se juízes passarem a autorizar a interrupção de gestações por tal motivo.
Certos magistrados têm proferido decisões favoráveis ao aborto quando se constatam síndromes genéticas graves no feto, como as de Edwards e Patau. Fazem-no por analogia com a decisão de 2012 do Supremo Tribunal Federal para os casos de anencefalia, que admitiu terminar a gestação quando comprovada a inviabilidade do bebê.
Tal jurisprudência veio alargar o rol de situações em que o aborto já era admitido por lei. Segundo o artigo 128 do Código Penal de 1940, não se pune o procedimento, se praticado por médico, quando não houver outro meio de salvar a vida da gestante, ou quando sua gravidez resultar de estupro e a mulher consentir com a interrupção.
Microcefalia não é anencefalia, contudo. Nascer com cérebro de tamanho menor pode acarretar vários problemas para a vida da criança, mas não a condena necessariamente à morte ou a expedientes extremos para sustentar-lhe a vida. Pela letra da lei, não serve de justificativa para abortar.
Diplomas legais, por outro lado, não comportam regras absolutas e imutáveis. Tanto admitem exceções, como a do aborto, como terminam reinterpretados, na jurisprudência, à luz de mudanças nos costumes, no conhecimento científico e no alcance das tecnologias.
Com a epidemia do vírus zika e os casos associados de microcefalia, cria-se uma dessas situações especiais: quantidade significativa de gestantes submetidas ao infortúnio de uma infecção que ameaça gravemente o desenvolvimento pleno de seus filhos.
Ressurge assim, com força, o argumento humanitário de que não cabe à sociedade impor-lhes a continuação dessa gravidez.
O mais racional, como defende esta Folha, seria revisar as provisões sobre aborto no Código Penal, descriminalizando a conduta. A legislação já conta três quartos de século. Parece justo, ademais, que se submeta a mudança a plebiscito ou referendo, dado seu caráter controverso.
Por fim, nunca é demais reforçar a importância de o governo insistir em políticas de planejamento familiar e ampliar o acesso a pílulas do dia seguinte, de maneira a reduzir a própria necessidade de abortos.
Acesse o PDF: Microcefalia e aborto, editorial do Jornal Folha de S. Paulo (Folha de S. Paulo, 16/01/2015)