Negras, menores de 14 anos e moradoras da periferia são as que mais morrem após interrupções da gravidez realizadas de forma insegura no país. “O que mata não é o aborto, é a clandestinidade”, diz especialista.
(Deutsche Welle, 21/02/2020 – acesse no site de origem)
Quando se fala em vítimas do aborto, o cenário é muito mais grave para mulheres dos chamados grupos vulneráveis. Por causa da ilegalidade da interrupção voluntária da gravidez no país, aquelas de segmentos periféricos – negras, indígenas e moradoras de regiões distantes dos grandes centros, além de adolescentes menores de 14 anos – acabam sendo as que mais morrem devido a complicações de procedimentos clandestinos.
Esta é a principal conclusão da pesquisa Aborto no Brasil: o que dizem os dados oficiais?, publicada nesta sexta-feira (21/02) nos Cadernos de Saúde Pública, revista da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Por meio de coleta e análise de registros públicos do Sistema Único de Saúde (SUS), os pesquisadores Bruno Baptista Cardoso, Fernanda Morena dos Santos Barbeiro Vieira e Valeria Saraceni, da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, traçaram um perfil das brasileiras mais vulneráveis nesse cenário.
Foram cruzados registros dos Sistemas de Informação sobre Mortalidade (SIM), Nascidos Vivos (Sinasc) e Internação Hospitalar (SIH) em um intervalo de dez anos – de 2006 a 2015. Os pesquisadores chegaram ao número de 770 óbitos maternos que foram registrados como tendo o aborto como causa oficial.
Entretanto, se forem consideradas as fichas que mencionam o aborto mas apresentam outras razões de morte, o número pode saltar em 29%. Seriam, portanto, 993 vítimas em todo o período, sem levar em conta as subnotificações.
“Embora os dados oficiais de saúde não permitam uma estimativa do número de abortos no país, foi possível traçar um perfil de mulheres em maior risco de óbito por aborto: as de cor preta e as indígenas, de baixa escolaridade, com menos de 14 e mais de 40 anos, vivendo nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, e sem companheiro”, pontuam os pesquisadores, no estudo. Na média, durante os dez anos o estudo identificou mulheres negras como as maiores vítimas – apenas em dois dos anos analisados, 2013 e 2014, as indígenas estiveram no topo desse ranking.
“Esse perfil pode ser usado como um marcador de risco nas internações pós-aborto, de modo a aumentar a vigilância clínica desses casos, resultando em uma evolução mais favorável. Esses grupos necessitam principalmente de acesso e qualificação das ações de planejamento reprodutivo e atenção pré-natal, a fim de reduzir o risco da ocorrência de aborto quer seja espontâneo ou provocado”, escrevem os autores do estudo.
“O que mata não é o aborto, é a clandestinidade”
“Não há, nos sistemas de informação de saúde brasileiros, qualquer dado sobre aborto inseguro. As bases de dados oficiais de saúde não permitem ter uma estimativa do número de abortos que ocorrem no Brasil. Os dados disponíveis se restringem aos óbitos por aborto e às internações por complicações de aborto no serviço público de saúde”, afirmam.
“Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 55 milhões de abortos ocorreram no mundo, entre 2010 e 2014, e 45% destes foram inseguros. No Brasil, dados sobre aborto e suas complicações são incompletos.”
A antropóloga Debora Diniz – professora da Universidade de Brasília, pesquisadora da norte-americana Universidade Brown e fundadora da organização feminista Anis Instituto de Bioética – acredita que o Estado deveria ser responsabilizado por essas mortes.
“O Estado tem o dever de descriminalizar para cuidar, cuidar para não ser acusado de omissão de socorro, e registrar [corretamente todas as mortes] para conhecer”, afirma ela, em entrevista à DW Brasil.
Diniz defende que a legalização do aborto é necessária por reconhecimento “que se trata de uma questão de saúde, e não de uma questão criminal”.
“As mulheres não morrem de aborto. Elas morrem da insegurança imposta pela criminalidade”, define. “E sabemos que as que morrem são as mais vulneráveis, que estão nas condições mais frágeis de acesso aos métodos seguros. O que mata não é o aborto, é a clandestinidade.”
De acordo com parâmetros da OMS, um aborto é considerado inseguro quando conduzido em ambiente sem adequação para procedimentos médicos ou feito por pessoas sem competência necessária.
A antropóloga lembra o caso de medicamentos como o Cytotec, de efeito abortivo, cuja comercialização é proibida no Brasil, mas que circula no mercado negro.
“Todas as vezes que temos uma regulação proibitiva sobre práticas que fazem parte da vida das pessoas, como é o caso do aborto, acabamos criando um mercado clandestino. E o mercado clandestino torna ainda mais inseguro o já imposto pela criminalização, porque as mulheres nem sequer sabem se estão usando o medicamento correto”, diz a antropóloga.
“É preciso uma educação sexual sem tabus”
Além da descriminalização do aborto, quem trabalha em projetos com mulheres vulneráveis defende a necessidade de programas de educação sexual como ferramenta para prevenção a gravidezes indesejadas, sobretudo na adolescência.
“Pela vivência que eu tenho, é preciso uma educação sexual sem tabus”, afirma à DW Brasil a jornalista Viviane Duarte, fundadora do projeto Plano de Menina, que trabalha o empoderamento de adolescentes em periferias das grandes cidades brasileiras.
“A maioria das mulheres que fazem aborto clandestino correndo risco de vida é das classes baixas. A falta de acesso a informação e renda faz com que as mulheres periféricas sejam as maiores vítimas de uma lei que não garante a elas a escolha sobre o próprio corpo”, aponta.
“A criminalização vem no mesmo complexo que traz o estigma como ferramenta de regulação social. Não à toa temos a ministra da Mulher [Damares Alves] falando em abstinência“, aponta Diniz.
“Abstinência sexual é uma tática que orbita o mesmo universo que o aborto. Os países onde aborto é criminalizado são acompanhados de restrição de acesso à informação, de acesso a métodos de política de saúde eficazes. Precisamos pautar a saúde sexual reprodutiva como uma questão que a ciência sabe responder. Um discurso de abstinência, sem nenhuma evidência científica, só potencializa e precariza ainda mais os dados. [Teremos mais] mulheres muito jovens em maior risco de morte e de gravidez não planejada”, considera.
Duarte avalia o cenário atual como um “momento de polarização e opressão contra a mulher”. “É preciso conversar sobre educação sexual, colocar educação sexual na escola e, assim, construir um futuro de cidadãos conscientes, que saibam prevenir com consciência uma gravidez na adolescência. E permitir que a menina consiga ser protagonista de sua história”, defende.
“Estamos nos mobilizando para, sim, levar educação sexual para os jovens e evitar que o prejuízo seja maior. A pauta [da ministra Damares Alves] está completamente equivocada e na contramão dos avanços da humanidade”, conclui.