Mulheres recorrem ao Congresso contra retrocessos no direito ao aborto previsto em lei

05 de junho, 2014

(Luciana Araújo/Agência Patrícia Galvão, 04/06/2014) Organizações de todo o país que atuam em defesa dos direitos das mulheres realizaram nesta quarta-feira visita ao Congresso Nacional para dialogar com deputados e senadores em defesa da Lei 12.845/2013 (que regulamenta o atendimento obrigatório a mulheres vítimas de violência sexual na rede de saúde). Após o recuo do Planalto e suspensão da Portaria 415 do Ministério da Saúde, que tratava do pagamento aos procedimentos de interrupção de gravidez nos casos previstos na legislação brasileira, as bancadas religiosas recrudesceram a ofensiva pela revogação da Lei sancionada no ano passado e buscam retirar qualquer previsão legal ao aborto no país. Neste dia 3, o deputado Stefano Aguiar (PSB/MG) protocolou requerimento para que seja colocado em votação o Projeto de Lei 6.033/2013, do peemedebista Eduardo Cunha, que revoga a lei de atendimento às vítimas de estupro no SUS.

Leia também: Mulheres divulgam carta em reação à ofensiva fundamentalista da Assembleia da OEA (Agência Patrícia Galvão)
“Foi um grande retrocesso”, diz ativista sobre veto à regulamentação do aborto legal (Revista Fórum)

Os grupos feministas que estiveram no Congresso na manhã acompanhando o lançamento da campanha “Eu Ligo 180 contra a violência contra a mulher” aproveitaram a oportunidade para buscar sensibilizar os parlamentares contra a revogação da Lei.

A polêmica da portaria do aborto permitido legalmente e o ataque aos direitos humanos

A Portaria 415, publicada pelo Ministério no dia 21 de maio, não trazia nenhuma mudança na legislação. Apenas especificava que todos os procedimentos inerentes ao aborto previsto em lei (estupro, risco de morte à mulher e anencefalia do feto) passariam a ser classificados como “Interrupção da gestação/antecipação terapêutica do parto” – corrigindo uma distorção histórica que mantém tais processos classificados como “curetagem”, uma técnica muito mais simples. A norma também adequava os valores repassados pelo Ministério aos serviços de saúde pela realização do procedimento. Ao contrário do que dizem os críticos, a norma especificava textualmente que a nova classificação consistiria em “procedimento direcionado a mulheres em que a interrupção da gestação é prevista em lei, por ser decorrente de estupro, por acarretar risco de vida para a mulher ou por ser gestação de anencéfalo”, que só seria realizado “em conformidade com as Normas Técnicas do Ministério da Saúde”. Estavam incluídos o acolhimento à vítima, anamnese, realização de profilaxias e exames necessários, incluindo anátomo-patológico, notificação de violência sexual e outras, consultas de retorno e guarda de material genético.

No dia 27, o líder do PMDB na Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, apresentou o Projeto de Decreto Legislativo 1487/2014 para sustar os efeitos da portaria, alegando que a mesma não traria “rígidos requisitos de comprovação de que o procedimento é decorrente de estupro, forma prevista na legislação atual”. De forma transversa, a proposta de Cunha tenta retirar do ordenamento jurídico nacional as previsões de aborto em casos de anencefalia (incluída pelo Supremo Tribunal Federal) e risco de morte à mulher (estabelecida já no Código Penal de 1940). O deputado e as bancadas religiosas aproveitaram o ensejo para retomar uma campanha contra qualquer forma de abortamento.

Os abortos clandestinos e os índices de mortalidade materna

Na tentativa de evitar este retrocesso legislativo em relação aos direitos das mulheres, uma comissão de entidades feministas distribuiu uma carta repudiando os ataques à Lei e conversou com parlamentares. Paula Viana, secretária executiva do Grupo Curumim, ressaltou à reportagem da Agência Patrícia Galvão que “a OMS divulgou um relatório há alguns dias sobre mortalidade materna, e o aborto inseguro é a quarta causa no mundo e a quinta causa no Brasil, representando 11% das mortes maternas. É uma coisa muito preocupante para ser tratada de forma tão leviana. Se conseguirmos reduzir esse índice, diminuiremos a taxa geral desse tipo de morte”.

De acordo com o Ministério da Saúde, no ano passado o aborto representou 4% da mortalidade materna no país. As infecções puerperais (provocadas em larga escala por abortos malfeitos e realizados em condições inadequadas de higiene) responderam por 7% das mortes de mulheres relacionadas a gestações. Reportagem recente da Agência Pública, utilizando dados do Ministério, aponta que 7% dos estupros resultam em gravidezes.

“Não havia aumento do valor do pagamento. A portaria apenas reconhecia o procedimento do aborto previsto em lei como uma ação multidisciplinar, pois o procedimento em si é mais complexo que uma simples curetagem, como é pago atualmente. E seria o serviço de saúde que receberia esse dinheiro, e não o médico, logo não havia nenhum ‘estímulo’ à realização de abortos no Brasil”, ressalta Paula.

Organizações feministas já vinham questionando a revogação da Portaria 415, ocorrida no dia 29 de maio, sob a justificativa de erros técnicos e financeiros. Paula aponta o peso da ação dos grupos contra o abortamento em quaisquer circunstâncias. “Há uma pressão, inclusive pública, dos setores conservadores no Congresso Nacional, que estão pouco se importando com a desassistência das mulheres e crianças na saúde pública. Na verdade, usam a pauta do direito à interrupção da gravidez prevista por lei como moeda de troca eleitoral. Há vários projetos que tentam restringir o acesso das mulheres a direitos, deixando de lado evidências científicas e políticas de países onde tais direitos estão instituídos em lei”, diz.

Confira abaixo a íntegra da carta distribuída aos parlamentares.

Aos Senadores e Senadoras da República,
Em defesa da dignidade e da vida das mulheres brasileiras!
Contra a violência, o estupro e o abuso sexual!
Repudiamos ataques à Lei 12.845/2003, que dispõe sobre o atendimento obrigatório e integral de pessoas em situação de violência sexual
As mulheres, em todas as faixas de idade, são as principais vítimas de violência sexual no Brasil. Na maior parte das vezes são crimes perpetrados por homens próximos, parentes ou amigos da família. Esse crime provoca, muitas vezes, a gravidez indesejada da mulher agredida, o que agrava a violência que esta já sofreu.
A Lei 12.845, de 2013, obriga o atendimento no SUS às mulheres que decidirem abortar quando a gravidez for resultante de um estupro. Esta é, para nós, uma ação humanitária e um direito humano fundamental das mulheres. Contudo, esta semana, parlamentares conservadores exercem pressão sobre o Congresso Nacional para a revogação dessa Lei, o que para nós configura ameaça de violação dos direitos humanos da mulheres e de sua dignidade.
No Brasil, desde 1940, o Código Penal exime de punibilidade o aborto resultante de estupro, mas os serviços de saúde por vezes se negam ou estão despreparados para fazer o procedimento, obrigando as mulheres vítimas de estupro a buscarem formas clandestinas e inseguras de aborto. A lei 12.845/2013 protege as mulheres que necessitam de políticas públicas de saúde e serviços de qualidade. Sua revogação colocará em risco, particularmente, a vida de mulheres mais pobres, em sua maioria negras. De modo especial violará os direitos humanos de adolescentes e jovens vitimas de abuso sexual.
Senadores e Senadoras, o Estado brasileiro precisa cumprir a legislação vigente, de maneira completa e integral. É de vossa responsabilidade apoiar e acompanhar a implementação da legislação do país.
Pela manutenção integral da Lei 12.845, de 2013 que dispõe sobre o atendimento obrigatório e integral de pessoas em situação de violência sexual.
Sem os direitos das mulheres, os direitos não são humanos !!!
Brasília, 4 de junho de 2014
ASSINAM:
1. Abrasco. Associação Brasileira de Saúde Coletiva
2. Anis. Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero – DF
3. Associação Casa da Mulher Catarina – SC
4. CDD. Católicas Pelo Direito de Decidir – Brasil
5. CEBES. Centro Brasileiro de Estudos da Saúde
6. CFEMEA. Centro Feminista de Estudos e Assessoria – DF
7. CEMICAMP. Centro de Pesquisas em Saúde Reprodutiva de Campinas – SP
8. Comitê Estadual de Estudos da Mortalidade Materna – PE
9. CLADEM. Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher – Brasil
10. CCR. Comissão de Cidadania e Reprodução – SP
11. CFESS. Conselho Federal de Serviço Social
12. Cunhã Coletivo Feminista – PB
13. Entre Nós Assessoria, Educação e Pesquisa em Gênero e Raça – SP
14. Grupo de Teatro Loucas de Pedra Lilás – PE
15. Grupo Curumim Gestação e Parto – PE
16. Grupo de Pesquisa sobre Gênero e Masculinidades – Gema/UFPE
17. Instituto Patrícia Galvão – SP
18. Instituto Papai – PE
19. REDEH. Rede de Desenvolvimento Humano – RJ
20. Rede Iluminar de Cuidados às Vitimas de Violência Sexual – Campinas – SP
21. Relatoria do Direito Humano a Saúde Sexual e Reprodutiva – Brasil
22. SOF SempreViva Organização Feminista – SP
23. SOS CORPO Instituto Feminista para a Democracia – PE
24. Superando Barreiras Campinas – SP
Movimentos, Redes , Fóruns e Articulações nacionais e internacionais signatárias:
1. Articulação de Mulheres Brasileiras – AMB
2. Articulação de Mulheres Negras Brasileiras – AMNB
3. Consulta Popular
4. Secretaria da Mulher Trabalhadora da CUT
5. Fórum de Mulheres do Distrito Federal e Entorno
6. Frente Nacional contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto
7. Levante Popular da Juventude
8. Liga Brasileira de Lésbicas – LBL
9. Movimento Estratégico pelo Estado Laico – MEEL
10. Movimento de Mulheres Camponesas – MMC
11. Marcha Mundial de Mulheres – MMM
12. Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos Sociais, Culturais e Ambientais – Dhesca – Brasil
13. Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos
14. Rede de Homens pela Equidade de Gênero – RHEG
15. União Brasileira de Mulheres – UBM
16. União Nacional dos Estudantes – UNE

Atualizada em 06/06/2013 às 10h03.

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