- Condição requer interrupção da gravidez, mas mulheres relatam descaso e falta de informação
- OUTRO LADO: Plano de saúde diz que paciente estava em período de carência e que o procedimento não era urgente; hospital afirma que escolha do tratamento é compartilhada com a paciente
Eduarda Fernandes, 26, estava casada havia um mês quando descobriu que estava grávida. “Brinquei que foi o presente de casamento de Deus para mim”, conta a advogada de Volta Redonda (RJ). No ultrassom, porém, não havia batimentos. Ouviu do médico que era um aborto retido: a gestação não estava evoluindo e precisaria ser interrompida.
Foi encaminhada a um hospital da rede privada, onde faria uma aspiração manual intrauterina (Amiu). Eduarda relata que já estava de avental e acesso na veia, esperando o procedimento, quando recebeu negativa do plano de saúde e foi enviada para casa.
Segundo o médico especialista em reprodução Sérgio Gonçalves, da clínica Mater Prime, o aborto retido ocorre quando o embrião para de se desenvolver, mas não há sintomas de abortamento, como sangramento ou contrações. “O colo do útero está fechado e o aborto está lá dentro, ele não está sendo eliminado”, explica.
“Nestes casos, há duas condutas possíveis: a expectante, que é aguardar o organismo eliminar o aborto, e a ativa, que é fazer curetagem ou Amiu”, diz o médico. Segundo ele, enviar a paciente para esperar em casa, a chamada conduta expectante, não é errada, mas deve ser discutida entre médico e gestante.
Uma norma técnica do Ministério da Saúde de 2005 de Atenção Humanizada ao Abortamento recomenda que o aborto retido seja tratado com “misoprostol ou, quando o tamanho uterino corresponder à gestação com menos de 12 semanas, pode-se empregar a técnica de aspiração manual intrauterina”.
“Eu pensava: ‘só quero resolver'”, conta Eduarda. Ela conseguiu fazer o procedimento em um hospital municipal e está processando o plano de saúde Amil. Pede danos morais e materiais. Procurado pela reportagem, o plano de saúde diz que Eduarda estava em período de carência e que o procedimento não era urgente.
A Amil afirma que o processo ainda não teve sentença. Diz ainda que, à época, a beneficiária estava com o seu contrato ativo havia oito dias e que se tratava de um procedimento eletivo, dentro de um contexto regular para o cumprimento de carência conforme definido em contrato.
Tortura psicológica
Os riscos e benefícios de cada conduta devem ser explicados para a paciente que, munida de informação, poderá fazer a escolha mais adequada, diz Gonçalves. Segundo ele, há quem opte pela conduta expectante. “A vantagem é que, na maioria das vezes, não precisa de internação, de se submeter a um risco anestésico e a eventuais complicações dos procedimentos.”
“Porém, como o nome já diz, a conduta expectante requer esperar. E isso pode ser uma tortura psicológica para algumas mulheres”, diz. “Já vi pacientes passarem de um mês com o aborto retido e o organismo não eliminar ou eliminar parcialmente. E aí precisam fazer a curetagem do mesmo jeito. Em alguns casos, a eliminação cursa com muita dor.”
Foi o que aconteceu com Mariana (nome fictício), 33. Após receber o diagnóstico de aborto retido, em 2021, ela foi ao pronto-socorro obstétrico da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo e pediu a interrupção. Foi enviada para casa. “Esperei um mês com o embrião morto dentro de mim, chorando todo dia. Quando começou a expulsão, fiquei seis horas tendo contrações e sangrando muito. No fim, tive que fazer a curetagem assim mesmo”, relata.
Gonçalves diz que o ideal é que a equipe de plantão agende o procedimento para outro dia. “Muitas vezes, o plantão está movimentado e o médico decide pela conduta expectante sem dar as opções. A paciente sente muito essa falta de informação, sai de lá desamparada. Receber esse diagnóstico já é um luto. O amparo não é só fazer a curetagem imediatamente, mas ter alguém que dê atenção, explique. E não: ‘vai para casa e espera um mês’. Isso é muito desgastante emocionalmente.”
A Santa Casa de Misericórdia de São Paulo afirma que “assegura atendimento humanizado, com respeito aos princípios éticos, legais e bioéticos, priorizando o acolhimento e o cuidado com a saúde física e emocional das mulheres, garantindo direito à informação, autonomia e escolha informada, conforme diretrizes da Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia) e do Ministério da Saúde. A escolha do tratamento é compartilhada com a paciente.”
”Enfiaram a mão para puxar’
Em 2022, a funcionária pública Jeanne Batista, 28, descobriu via ultrassom que sua gravidez não estava evoluindo. Foi à emergência do Hospital Adão Pereira Nunes, o Saracuruna, em Duque de Caxias (RJ), onde diz ter sofrido violência obstétrica.
“Parece que alguns médicos têm raiva de grávida”, diz Jeanne. “Ainda me emociono ao falar. Fizeram o toque e viram que o embrião não estava saindo. Introduziram o remédio e enfiaram a mão dentro de mim para puxar.”
Em 2023, ela teve outro aborto retido e foi à Maternidade Santa Cruz da Serra, também sob gestão municipal de Duque de Caxias. “Foi pior ainda”, conta. “O médico introduziu uma mão em mim e, com a outra, empurrava minha barriga para baixo. Tenho trauma até hoje desse doutor e do terror que eu passei. Gritava que estava doendo e ele dizia: ‘mas tem que tirar’. Minha mãe estava do meu lado, ela falava: ‘isso não se faz.'”
A Prefeitura de Duque de Caxias foi procurada pela reportagem, mas afirma que faltam dados sobre o caso em questão para responder.
Ariane Victor, 32, de Porto Alegre (RS), teve um aborto retido em janeiro deste ano. O médico particular a orientou pela conduta expectante. “Ele disse que a curetagem não é aconselhável ou que ele não aconselhava, não lembro. Me explicou que poderia levar até 40 dias para o corpo expelir e se passasse disso poderia infeccionar. Fiquei quatro dias expelindo”, relata.