Numa sociedade que criminaliza o aborto, a maternidade é uma imposição
(Folha de S.Paulo, 28/02/2020 – acesse no site de origem)
Simone de Beauvoir, em “O Segundo Sexo”, faz uma afirmação muito interessante sobre a maternidade: “Não há mãe desnaturada, posto que o amor materno nada tem de natural; mas precisamente por conta disso há mães más”.
Gosto de refletir sobre essa afirmação, pois desconstrói uma visão que pode aprisionar as mulheres em papéis fixos. Ou fazê-las se sentirem mal por estarem com dificuldades de amamentar ou de educar os filhos, por exemplo. Retira aquele peso do “mas você deveria saber disso, pois está na sua natureza”.
E quantas de nós podem se cobrar por não corresponder ao que se espera de uma “mãe de verdade”.
Ao mesmo tempo, a afirmação é libertadora porque quebra com a ideia que todas as mães são carinhosas e boas. Mães são pessoas, seres humanos, com todas as suas complexidades, contradições. Muitas podem ser boas; outras, não.
Retirar essa visão de amor natural tira o espanto quando vemos mulheres não correspondendo ao que se espera de uma mãe.
Num país em que por volta de 5 milhões de crianças não têm o nome do pai na certidão de nascimento, a imposição de um amor paterno natural parece não existir. Quando homens não correspondem ao que se espera de um bom pai, também se pode usar a natureza, mas como desculpa: “Homem é assim mesmo”, “homem não consegue fazer várias coisas ao mesmo tempo”. Aceite, pois “ser mãe é padecer no paraíso”.
Numa sociedade que criminaliza o aborto, a maternidade é uma imposição. Porém, as mulheres abortam.
Segundo a Pesquisa Nacional do Aborto realizada por Debora Diniz e Marcelo Medeiros, cerca de 48% das mulheres que abortaram completaram o ensino fundamental, e 26% tinham ensino superior. Do total, 67% já tinham filhos, 56% eram católicas e 25% protestantes ou evangélicas.
Ou seja, muito é possível pensar a partir desses dados, mas à primeira vista é notável que a hipocrisia em torno do assunto é patente. Mulheres, sobretudo as que pertencem a grupos vulnerabilizados, vivem sob um discurso hipócrita que de um lado criminaliza sob o discurso moral-religioso e impede o acesso a um procedimento seguro; de outro, convive ano após ano com a miséria, a fome, a exclusão de pessoas de um padrão digno de vida. É como se dissesse: “Não admito que você decida não ser mãe, mas não me importo com a criança que nascer”.
Se ela não for morta no meio do caminho e vier a ser adulta, me importarei menos ainda.
Pensar como a maternidade é imposta como destino é fundamental para uma discussão sobre direitos. Porém, trago a visão da feminista negra Carla Akotirene quando diz que o Ocidente cristão transforma a categoria mãe numa variação identitária de gênero, a mulher oprimida, presumivelmente presa à heterossexualidade, à família nuclear.
“Tal mulher, depois da experiência de filha sujeita às ordens do pai, torna-se a esposa, adiante, mãe. É subordinada ao outro e não vive independentemente desse outro. Talvez, por isto, vários feminismos brancos rejeitem a maternidade, mas os filhos das mulheres negras foram vendidos como escravizados e ainda hoje quando escolhemos ter filhos eles são assassinados.” Mulheres negras, por causa da opressão racista, criam seus sobrinhos, netos. As empregadas domésticas são obrigadas a cuidar dos filhos das patroas precisando ausentar-se da criação dos seus, assim como suas antepassadas foram forçadas quando escravizadas a cuidar e amamentar os filhos das sinhás. Olhar a maternidade como um direito, para mulheres que foram impedidas de exercê-la, é fundamental.
Akotirene chama a atenção para o pensamento iorubá de Oyeronke Oyewumi, que diz que mãe é princípio ancestral. “As ialorixás, mães, sobretudo as zeladoras dos orixás, casaram-se na ausência do marido corpo físico e tiveram filhos e filhos para além da biologia. As ialorixás disciplinam, amam, usam todas as suas forças, expulsam a gente de casa, mastigam pra gente comer, botam no colo e de castigo.”
Resgatar esses saberes é fundamental para um discussão sobre maternidade que não seja subordinada somente ao viés da opressão e contemple uma multiplicidade e não somente um modo de ser mãe. Oxum, antes de cuidar de seus filhos limpa suas joias. Iansã é mãe de nove e sai para ganhar o sustento dos filhos. Olhar por outra matriz rompe com uma visão imposta como universal. Nessa perspectiva, também não há mãe desnaturada, há várias formas de ser mãe.
Conclui Carla: “Oxum, como Ialodê amada, é autoridade no espaço público, mãe não binária, sem desmerecer as alquimias da casa porque todos os ancestrais comem. Iansã é mãe dos nove e mãe firme. Nanã envelheceu o desejo de não maternar. Somos mães aguadas de prestígio e força, parindo ou não”.
Djamila Ribeiro
Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.