(Folha de S.Paulo) Com ou sem a legalização do aborto, decisão que exige referendo, o governo deveria desde já fazer campanha pelo uso da pílula do dia seguinte
Flexibilizar a legislação sobre o aborto, permitido hoje apenas em caso de risco de morte para a mãe ou de gravidez resultante de estupro, não é uma iniciativa que se tome sem elevados custos políticos.
Resistências das principais confissões religiosas se fazem notar com grande vigor, e não se encontra, nos que defendem a opinião oposta, comparável poder de organização na esfera partidária.
O peso das convicções pessoais é decisivo, sempre que se fala em aborto. Esta Folha defende que uma consulta popular seria o melhor meio de empreender às claras a discussão sobre mudanças na lei.
A comissão do Senado para a reforma do Código Penal parece ter tomado um caminho tortuoso para tratar do tema. Propôs que o aborto deixe de ser crime em outras situações, além das já previstas na lei.
Seria permitida a interrupção da gravidez, assim, quando comprovada a anencefalia do feto ou quando este “padecer de graves e incuráveis anomalias”, mediante atestado de dois médicos. Também se recorreria à opinião de um médico para permitir o aborto por vontade da gestante, se constatado que a mulher não apresenta “condições psicológicas de arcar com a maternidade”.
O mecanismo imaginado pela comissão não deixará, certamente, de provocar enfáticos protestos nos setores antiabortistas -sem constituir, por outro lado, uma resposta à clássica reivindicação feminista de que a continuidade da gravidez é, em última análise, uma opção a ser tomada conscientemente pela mãe.
Entregar tal responsabilidade à tutela subjetiva de um médico parece uma afronta à dignidade da mulher, quando não uma delegação abusiva de poder, ou mero convite à produção de atestados paternalistas e de dúbio valor.
Enquanto não se promove uma discussão desimpedida sobre o tema, no contexto de um referendo popular, o aborto continua sendo um gravíssimo problema de saúde pública. Calcula-se em mais de um milhão o número de abortos clandestinos feitos anualmente -terceira causa de mortalidade materna no país, ao lado de hemorragias.
Parte do problema seria evitado se, a exemplo das campanhas a respeito de preservativos, o poder público se empenhasse em divulgar ao máximo e distribuir com eficiência a chamada pílula do dia seguinte.
As resistências religiosas a esse mecanismo contraceptivo, como se sabe, são intensas -mas não impediriam que raciocínios de saúde pública preponderassem nas decisões dos governantes, como já acontece com a camisinha.
Sem um mínimo de coragem para tratar do tema, conclui-se, nenhuma solução real será atingida, por mais artificiosa que seja a imaginação dos juristas encarregados de propor alterações na lei.
Acesse em pdf: Proposta pragmática, editorial da Folha de S.Paulo (Folha de S.Paulo – 03/03/2012)