(Agência Aids) Há um mês sem um diretor oficial, o Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais, já considerado referência para o mundo, passa por um momento crítico. Ativistas reclamam da gestão do ministro da Saúde, Alexandre Padilha, por constantes vetos em campanhas de prevenção ao HIV e pelo pouco diálogo com sociedade civil.
No próximo dia 8 de julho, o médico Fábio Mesquita assumirá o posto. Do Vietnam, onde trabalhava para a OMS, ele respondeu a perguntas feitas pela Agência de Notícias da Aids e por representantes do movimento social de luta contra a epidemia.
Segundo Mesquita, os movimentos populares precisam aceitar o fato de que as pessoas à frente do Departamento não podem fazer tudo que querem. “Não há salvadores da pátria. Estamos todos no mesmo barco e os inimigos são as epidemias de aids e de hepatites”, disse. “O governo deve estar aberto para dialogar com a sociedade civil, mas a sociedade civil, por sua vez, deve vir desarmada para essa discussão”, acrescentou.
Ex-responsável pela unidade de Prevenção do então Programa Nacional de DST/Aids, ele elogiou a gestão do ministro Padilha e disse que “se alguém prometer trabalhar de maneira desvinculada do Ministério, ou está sendo mentiroso ou antiético”.
Leia a seguir a entrevista na íntegra:
Agência Aids – Roseli Tardelli: Nos últimos anos, uma das maiores dificuldades na direção do Departamento de Aids tem sido enfrentar a pressão da bancada conservadora no Congresso, que segundo ativistas, tem atrapalhado a manutenção da vanguarda da resposta brasileira contra a epidemia. O que o senhor pretende fazer para enfrentar esse problema?
Fábio Mesquita: O Parlamento brasileiro representa, como sempre representou, o conjunto da sociedade brasileira. Um Congresso conservador tende a refletir uma sociedade conservadora. Acontece que, entre outras coisas, as informações divulgadas nesse País são difundidas de maneira equivocada. Muitas vezes o todo da sociedade não se faz mais participativo junto às causas das populações mais vulneráveis, por falta de informação ou por causa da maneira como estas são veiculadas. Infelizmente, com muita frequência, a mídia compartilha informações de maneira capciosa, com o intuito de influenciar a opinião pública. Isso, às vezes, leva a população como um todo a não se engajar em causas justas.
Quando a sociedade está esclarecida e organizada, não há como setores conservadores conduzirem o Congresso. O arquivamento da proposta da “cura gay” é um claro exemplo disto. Além disso, eu tenho aprendido cada dia mais a trabalhar na diversidade e vou usar esta minha experiência e habilidade para vender melhor as necessidades da luta contra a epidemia. Durante meus oito anos de trabalho fora do Brasil, tive contato com Parlamentos de países bastante complexos, como o parlamento da Indonésia, que é o maior país muçulmano do planeta, das Filipinas, que é um país católico, conservador e onde as pessoas ainda se autoflagelam e se crucificam em praça pública para expiação de seus pecados.
Na Indonésia, que é um país que ainda tem pena de morte para tráfico de drogas, conseguimos implantar programas de metadona (analgésico usado no tratamento de dependentes químicos) dentro das cadeias. Nas Filipinas, onde a igreja condenava até o uso de tabelinha como método contraceptivo, nós conseguimos implementar diversas campanhas de combate a aids, divulgando o uso da camisinha. No final do ano de 2012, as Filipinas finalmente aprovaram a primeira Lei de Planejamento Familiar da história do país. No Vietnam, que é um país comunista, onde a prostituição é crime e as profissionais do sexo são perseguidas e muitas vezes até abusadas, conseguimos fechar os centros de reabilitação, lugares para onde essas mulheres eram levadas para fazer trabalho forçado.
Passamos por experiências incríveis em todos estes parlamentos. Não foi fácil, mas foi de um enriquecimento humano enorme. Vi muitas pessoas incríveis que se levantavam diante da maioria para defender ideias no seu conceito, revolucionárias que auxiliaram muito a luta contra a epidemia. Parlamento, na minha opinião, é um lugar de diálogo e de debate de ideias onde as coisas podem sempre avançar.
Araujo Lima Filho, diretor do Espaço de Prevenção e Atenção Humanizada (EPAH): Tendo em vista que o movimento social não está reconhecendo o Departamento como um espaço de interlocução, qual a sua estratégia para resgatar esse diálogo?
Mesquita: Tenho dialogado com uma série de lideranças do movimento social no Brasil, incluindo pessoas do Conselho Nacional de Saúde, do movimento de hepatites e do movimento de aids. Na recente Conferência da IAS (Sigla em inglês para Sociedade Internacional de Aids) em Kuala Lumpur, na Malásia, encontrei pessoas da Fiocruz, da UNIFESP e vários profissionais históricos do movimento, todos dispostos a ajudar. Muita gente me disse que esse seria o maior desafio neste momento. Mesmo à distância, eu acompanhei muito de perto o que acontecia no Brasil. Era claríssimo o quanto a sociedade civil atacava a gestão do Dr. Dirceu Greco e do Eduardo Barbosa. As queixas eram tantas que resultaram no documento “O que nos tira o sono?”. Eu ficava refletindo como deveria ser difícil trabalhar com tanta oposição.
Acredito que a solução para isso seja uma via de duas mãos. O governo deve estar aberto para dialogar com a sociedade civil, mas a sociedade civil, por sua vez, deve vir desarmada para essa discussão. Armada sim com a sabedoria de quem vive o problema, com a experiência de quem lida com isso no seu dia a dia, mas desarmada no sentido da critica gratuita e da agressão desnecessária. Todos nós que de uma maneira ou de outra estamos à frente do trabalho de luta contra a aids queremos fazer o melhor possível. Acontece que somos limitados como seres humanos e limitados como instituição. Todos os coordenadores de aids que passaram por esse Departamento eram pessoas absolutamente comprometidas com a causa, só não eram super homens e nem mulher maravilha. Eram pessoas bem intencionadas, porém falíveis, assim como eu.
Como dizia o mestre Paulo Freire, “não há vida sem correção, sem retificação”. Acredito que os movimentos populares precisam aceitar o fato de que as pessoas à frente do Departamento não podem fazer tudo que querem. O Movimento Social tem um papel e o Governo tem outro. É possível e necessário trabalhar juntos, mas cada qual com sua peculiaridade. Não há salvadores da pátria. Estamos todos no mesmo barco e os inimigos são as epidemias de aids e de Hepatites.Tenho recebido muito apoio de pessoas e organizações importantes, tanto no Brasil, quanto fora, no movimento global de luta contra a aids e de luta contra hepatites. Isso me enche de ânimo e esperança de que as relações se restabelecerão. Vou me empenhar muito para que isso aconteça, mas quando um não quer, dois não brigam, a sociedade civil precisa estar aberta para a pareceria, tanto quanto como nós.
Alessandra Nilo, coordenadora da ONG Gestos-PE: Considerando que nos últimos dois anos a política de enfrentamento a aids, por parte do Ministério da Saúde e do Departamento de Aids, tem sido fortemente criticada pela academia, sociedade civil, parlamentares e pelo próprio Conselho Nacional de Saúde, quais serão as três principais ações que o senhor vai implementar no momento em que chega, visando superar esta crise?
Mesquita: Eu li atentamente o documento “O que nos tira o sono?” (Acesse aqui) quando foi publicado. As angústias e anseios ali expressados nortearam um pouco a visão que tenho hoje para o Departamento. Diálogo, inovação e resposta à epidemia, baseada em evidências científicas serão a base das minhas principais ações contra a aids e as hepatites, já que esta última também é de nossa responsabilidade, mas andava meio esquecida.
Nair Brito, do Movimento Nacional das Cidadãs PositHIVas: Como o senhor pensa em conduzir a participação da sociedade civil, mediante situações em que Ministro se posicionar contrariamente a esta participação? A sociedade civil terá voz na sua gestão ou será apenas um enfeite de árvore de natal?
Mesquista: Os representantes das sociedades civis de aids e de hepatites terão voz, a comunidade científica terá voz e os técnicos que dão muito duro no dia a dia da coordenação nacional e muitas vezes sub-aproveitados também terão voz. Vamos ter de afinar o coro que certamente não será só de sopranos.
Mario Scheffer, professor da Faculdade de Medicina da USP e integrante do Grupo Pela Vidda: Quais são as políticas a serem implementadas para enfrentar a epidemia concentrada na população homossexual?
Mesquita: Fui o idealizador do primeiro documento publicado pela OMS sobre esse tema. O conteúdo integral pode ser encontrado neste link e portanto estou bem familiarizado com o tema no momento atual. O documento foi assinado por diversas agências da ONU e pela Coalizão sobre Saúde Sexual Masculina da Ásia e Pacífico (APCOM, em inglês). A crescente epidemia de aids entre homens que fazem sexo com homens não é um fenômeno só no Brasil, mas em todo o mundo. O avanço da doença se amplia em países de baixo, médio e alto desenvolvimento. Vivi experiências de enfrentamento desse problema em vários países e muitas dessas experiências positivas poderão servir como inspiração para lidar com a realidade brasileira.
O fundamental é trabalhar em conjunto com as organizações LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais) de maneira a reconhecer e atender suas demandas. Em todas as experiências pelas quais eu passei nessa área, a parceria com os agentes envolvidos na questão é fundamental, não apenas para o mapeamento das demandas, mas também para somar ideias criativas de combate às epidemias de aids e hepatite.
É importante ressaltar que eu entendo por população LGBT todas as letrinhas da sigla. Quero muito ouvir e contar com as lésbicas, as travestis e a população transexual e transgênera, que algumas vezes são marginalizadas dentro da própria comunidade gay. Também quero contar com tecnologias de prevenção a partir do uso de antirretrovirais, como a PREP (Profilaxia pré-exposição ao HIV) e TASP (Tratamento como prevenção para pessoas já infectadas). A epidemia concentrada na população homossexual certamente será uma área prioritária do Departamento.
Jorge Beloqui, pesquisador e integrante do GIV: O que vai fazer a respeito das campanhas para as populações vulneráveis censuradas pela comunicação do Ministério? O senhor também pretende aceitar esse tipo de ingerência nas campanhas que for conduzir?
Mesquita: Há diversas maneiras de conduzir campanhas para populações mais vulneráveis. Juntos encontraremos o tom e a maneira mais adequada de implementá-las. Vou aceitar a opinião de todos os envolvidos em cada atividade particular de produção do material de propaganda, dando bastante peso para profissionais de publicidade – que têm esta profissão e são muito bons no que fazem – e certamente vou seguir o protocolo de comunicação da instituição para qual eu trabalho. Na OMS funciona exatamente assim, temos clareza de quem é técnico de que, temos fóruns de debates e discussão e temos um profundo respeito por quem dirige nossa organização. Nas redes mundiais de luta contra a epidemia de aids é também assim que funciona.
Rodrigo Pinheiro, presidente do Fórum de ONG/Aids do estado de São Paulo: Sua gestão terá uma forma independente de trabalhar ou será submetida à posição e gestão do Ministério da Saúde?
Mesquita: Como você deve saber, há, de acordo com a legislação brasileira, diversos poderes regendo a esfera governamental. O Governo do Presidente, no caso da Presidenta, é o que chamamos de Poder Executivo. Nele há um órgão responsável pelas iniciativas governamentais na área de saúde, chamado Ministério da Saúde. Dentro do Ministério da Saúde há várias Secretarias e uma delas é a de Vigilância em Saúde. Nesta diretoria se localiza o Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais. Este Departamento tem uma cargo “DAS 5” de Diretor, que é o cargo para o qual estou sendo designado. Ou seja, é um cargo governamental e portanto é e sempre será, inclusive por lei, alinhado com a gestão do Ministério da Saúde.
Se alguém prometer trabalhar de maneira desvinculada do Ministério, ou está sendo mentiroso ou antiético. A coordenação de aids é um dos braços do ministério e portanto submetida a ele. Não se trata de uma ONG dentro do governo, mas de um dos setores do governo. Aceitei o convite honroso do Ministro Alexandre Padilha para compor sua equipe de governo, aliás de excelente qualidade. Quem conhece a história do SUS neste País vai encontrar muitos dos seus atores principais envolvidos nesta gestão.
Para a tranquilidade de todos nós brasileiros, o governo do Brasil na área de saúde é fiscalizado pelo Conselho Nacional de Saúde e tem de prestar contas das suas ações e omissões a ele. Além disto, como diretor do Departamento, eu serei fiscalizado pelo Congresso, pelo Poder Judiciário, pela imprensa e pela população. Isso é democracia. Infelizmente, nem todo lugar do mundo é assim. E eu adoro democracia, que implica em prezar que existam diferenças ou diversidades.
Agência Aids – Lucas Bonanno: Na última gestão do Departamento de Aids, um dos diretores-adjuntos era uma pessoa vivendo com HIV e aids e oriunda do Movimento Social, o senhor pretende levar em conta experiências como essa para formar sua equipe de gerência?
Mesquita: Sem duvida essa é uma experiência interessante, inclusive já adotada também pela ONU, organização para a qual trabalhei nos últimos seis anos. Esse será certamente um ótimo critério a ser levado em conta, mas não o único. Como a própria Agência Aids publicou muitas vezes, o fato do Departamento contar com um portador de HIV, oriundo de movimentos populares, não eximiu o departamento de criticas contundentes por parte do próprio movimento social, como está expresso no documento “O que nos tira o sono?”, já citado anteriormente nessa entrevista. A empatia e a experiência pessoal certamente são de extrema importância, principalmente quando essas qualidades vem alinhadas à competência técnica e compromisso com a causa.
Redação da Agência de Notícias da Aids e ativistas do movimento social de luta contra a aids