(Felipe Recondo, de O Estado de S. Paulo-DF) Autor da ação que defende o aborto nesse caso, advogado Luís Roberto Barroso afirma que situação impõe sofrimento inútil e evitável
Passados mais de sete anos desde que chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF), a ação que defende o aborto de fetos anencefálicos será julgada nesta quarta-feira. A tendência do tribunal, conforme ministros, é liberar a interrupção da gravidez.
 Autor da ação, o advogado Luís Roberto Barroso afirma, em entrevista ao  Estado, que o julgamento desta semana não é uma etapa para a liberação do  aborto. E critica aqueles que afirmam ser a interrupção da gravidez nos casos de  anencefalia um primeiro passo para a eugenia.
Autor da ação, o advogado Luís Roberto Barroso afirma, em entrevista ao  Estado, que o julgamento desta semana não é uma etapa para a liberação do  aborto. E critica aqueles que afirmam ser a interrupção da gravidez nos casos de  anencefalia um primeiro passo para a eugenia.
“Equiparar a antecipação de parto no caso de feto anencefálico com a eugenia é um abuso verbal, quase um uso imoral da retórica”, disse.
A ação foi protocolada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) em 2004. Naquele mesmo ano, o relator do processo, ministro Marco Aurélio, deu uma decisão provisória (liminar) para a liberação do procedimento médico de interromper a gravidez nesses casos. Três meses depois, a liminar foi cassada. Em 2008, o STF convocou uma audiência pública para ouvir médicos, cientistas e organizações religiosas sobre o assunto (mais informações nesta página).
A seguir, os principais trechos da entrevista concedido ao Estado:
Que argumento o senhor usará para tentar convencer os ministros do STF?
Nós temos três teses principais. A primeira delas é de que essa hipótese não  é de aborto. O aborto pressupõe a potencialidade de vida do feto. Como o feto  anencefálico não tem potencialidade de vida extrauterina, nossa tese é que esse  fato é atípico. Ele não é colhido pela definição de aborto do Código Penal. Por  essa razão, a mulher deveria ser automaticamente autorizada a interromper a  gestação.
A vida do feto, neste caso, não deveria ser protegida?
No Direito brasileiro não há uma definição do momento do início da vida, mas  há uma definição do momento da morte, que é a morte encefálica, prevista na lei  de transplante de órgãos. No caso do feto anencefálico, ele não chega sequer a  ter início de vida encefálica. Por isso sustentamos que, por não haver vida, não  há aborto.
E se o STF discordar dessa tese e disser que a vida intrauterina deve ser  protegida?
Ainda que se considerasse essa hipótese como sendo de aborto, ela deveria  cair nas exceções do Código Penal. O Código prevê duas exceções nas quais não se  pune o aborto: em caso de necessidade para salvar a vida da mãe e em caso de  estupro. Nessas duas exceções, o feto tem potencialidade de vida. Mas o  legislador, ponderando a vida do feto com a vida da mãe ou com a violência  física e moral sofrida pela mãe permite a interrupção da gestação. O caso da  anencefalia é menos do que os casos de estupro e de aborto para salvar a vida da  mãe, porque não há potencialidade de vida.
O Código Penal não prevê essa exceção. Por quê?
Essa exceção não foi prevista expressamente porque em 1940, quando o Código  Penal foi elaborado, não havia meios tecnológicos de diagnosticar a  anencefalia.
Qual é a terceira tese?
Ainda que se considere aborto, nessa hipótese as normas do Código Penal que  criminalizam o aborto são excepcionadas pela aplicação do princípio  constitucional da dignidade da pessoa humana. Esse princípio paralisaria a  incidência dessas normas do Código Penal.
Por que a gravidez de feto anencefálico violaria a dignidade? 
Obrigar uma  mulher que faz o diagnóstico (de anencefalia do feto) no terceiro mês de  gestação a levá-la até o nono mês significa impor a ela seis meses de um  sofrimento inútil. Essa mulher vai passar por todas as transformações físicas e  psicológicas pelas quais passa uma mulher que está grávida se preparando para  ter seu filho. Mas, nesse caso, a mulher estará se preparando para o filho que  não vai chegar. Isso é equiparado à tortura. Impõe à mulher um sofrimento físico  e psicológico inútil e evitável.
Se o Congresso não mudou o Código Penal, por que isso deveria ser feito pelo  STF?
A vida na democracia é feita pelo processo político majoritário, que se  desenrola no Congresso, e pela proteção e promoção dos direitos fundamentais via  Constituição e Supremo Tribunal Federal. Quando o processo majoritário está  azeitado, fluindo bem, com grande legitimidade, a jurisdição constitucional  recua. E quando o processo político majoritário emperra ou enfrenta dificuldades  para votar determinadas matérias, o STF tem seu papel ampliado.
Mas isso não pode ainda ser votado no Congresso?
Sempre que se tratar da proteção de minorias ou de situação politicamente  complexa o risco de a matéria não ser resolvida pela via legislativa é muito  grande. Isso vale para negros, como ocorreu nos Estados Unidos; para  homossexuais, como ocorre em quase todas as partes do mundo; vale para religiões  minoritárias e vale também para as mulheres.
Por que considera as mulheres um grupo minoritário?
As mulheres tecnicamente não são minoria do ponto de vista quantitativo, mas  são minoria do ponto de vista da vulnerabilidade. Portanto, certos direitos das  mulheres só podem ser conquistados via poder Judiciário.
O senhor disse que há questões de classe envolvidas nesse assunto. Por  quê?
A questão da anencefalia, como o aborto em geral, tem um corte de classe  evidente. Esse não é um problema da classe média, que resolve isso  discretamente, fora do alcance do Estado. Quem precisa do direito de antecipar o  parto em caso de anencefalia são mulheres pobres que precisam da rede pública.
Algumas pessoas contrárias a essa tese dizem que isso abriria espaço para  eugenia. Como o senhor responde a isso?
Equiparar a antecipação de parto no caso de feto anencefálico com a eugenia é  um abuso verbal, quase um uso imoral da retórica. A antecipação do parto de feto  inviável nada tem a ver com eugenia. Não há crianças anencéfalas, adultos  anencéfalos. A letalidade da anencefalia é certa. A equiparação com deficiência  é uma forma antiética de argumentar. A deficiência é uma manifestação da  diversidade humana. Ela não se confunde com a inviabilidade fetal.
Mas essa decisão é uma etapa para o aborto?
A discussão necessária e importante sobre o aborto no Brasil não depende da  questão da anencefalia. São discussões diferentes. Portanto, não acho que uma  discussão abra caminho ou feche as portas para o aborto. As questões éticas  colocadas em debate são diferentes.

Acesse em pdf: ‘Obrigar gestação de anencéfalo é torturar a mulher’ (O Estado de S. Paulo – 08/04/2012)
 
     
                     
                     
                    