12/02/2012 – De volta à agenda, por Debora Diniz

12 de fevereiro, 2012

(O Estado de S. Paulo) O aborto é uma questão de saúde pública. Essa é uma tese acadêmica dos anos 1980, quando os primeiros estudos mostraram a relação entre a morte das mulheres e o aborto inseguro. As mulheres morriam por perfuração uterina com agulhas de crochê ou sondas, envenenadas por chumbinho ou gravemente adoecidas sem assistência médica. Neste momento, essa é mais do que uma tese de acadêmicas e feministas: é a posição da nova ministra da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, Eleonora Menicucci. As recentes declarações da ministra traçaram a fronteira entre sua posição como uma liderança intelectual do movimento feminista no Brasil e a posição do governo, o que não enfraquece sua convicção política de que o direito ao aborto deve ser inalienável às mulheres. O direito ao aborto estará na agenda política nacional e Menicucci ressoará as vozes das mulheres que abortam ilegalmente todos os anos.
O que fundamenta a tese da ministra de que “o aborto é uma questão de saúde pública”? Sabemos muito mais sobre como as mulheres fazem aborto, seus métodos e riscos, do que nos anos 1980, quando a tese da saúde pública ganhou força. A magnitude do aborto é uma forma simples de traduzir a tese da ministra: uma em cada cinco mulheres aos 40 anos já fez pelo menos um aborto. Ainda jovens, milhões de mulheres ultrapassam a fronteira da legalidade para abortar.

Elas são jovens no início da vida reprodutiva que se deparam com uma gravidez não planejada. Muitas delas já são mães, autoridades no tormento sublime do cuidado de filhos. Entre a proibição legal, o castigo e o medo, as mulheres colocam suas vidas em risco e saem à procura de ervas, medicamentos ou clínicas para realizar o aborto na clandestinidade. A partir desse momento, elas passam a reanimar a vasta cultura do aborto, que se reproduz à margem da proteção do Estado.

Há uma cultura feminina do aborto no Brasil. Ela é vivida e contada por mulheres: as mães protegem suas filhas, e as amigas se reconfortam mutuamente, em uma vasta rede de mulheres que cuidam umas das outras. Elas são mulheres muito diferentes – classes, cores e regiões as demarcam como singulares, mas todas ativam o universo clandestino das práticas e métodos do aborto. A decisão de abortar demarca um rito existencial na vida de uma mulher, porém diferente do descrito pela narrativa religiosa da culpa ou do pecado. É o rito de viver uma experiência clandestina. Os traços de uma prática clandestina estão presentes: há risco, medo, violência e castigo. Nesse mundo feminino, os homens transitam como companheiros, médicos à margem da legalidade ou vendedores de Cytotec. Eles são também os inquisidores que as esperam nos hospitais públicos, nas delegacias ou nos tribunais. Não é uma cultura secreta, mas clandestina e resistente à força penal do Estado.
Não é só na magnitude do aborto que a tese da saúde pública se evidencia, mas na experiência individual de cada mulher para abortar. O atraso menstrual demarca o início do rito corporal. Há uma intensa negociação consigo mesma sobre o significado do atraso – uma alteração hormonal sem sentido ou uma gravidez. Os chás, ervas e líquidos entram em cena para investigar os sinais do corpo. Boldo, buchinha, “mal-com-tudo”, sena, em chás isolados ou combinados a coca-cola, Anador, Sonrisal, são alguns dos líquidos mais comuns. Elas esperam a menstruação dar seus sinais. A espera é angustiante e não pode se estender, pois os riscos aumentam com as semanas de atraso menstrual. O segundo momento do rito é quando os homens de sua rede de cuidados entram em cena sob a supervisão de outras mulheres. Se ela opta por um aborto com medicamentos, caberá a ele comprar o Cytotec. Se for a uma clínica clandestina, os custos serão uma responsabilidade masculina. Muitas delas terminam o aborto em um hospital público.
Uma mulher só conhecerá os efeitos dessa combinação de chás, ervas e líquidos em seu próprio corpo. A literatura médica desconhece tanto seus poderes abortivos quanto os riscos à saúde de um chá de “mal-com-tudo” com coca-cola e aspirina, ingerido em jejum após uma noite de espera no sereno. Ela só saberá a procedência do Cytotec a partir dos efeitos em seu útero. As dores, o sangramento e a espera pelo aborto serão vividos diferentemente pelas mulheres, mas de uma maneira absurdamente solitária. Elas temem os hospitais, angustiam-se em pensar nos médicos e nas enfermeiras. Se há um trauma pós-aborto, ele não está na experiência de ter abortado, mas na de ter sido lançada, em uma ala de mulheres com recém-nascidos nos braços após uma curetagem. As mulheres temem ser julgadas, maltratadas e esquecidas pelos serviços de saúde. Por isso, aguentam as dores por horas intermináveis na tentativa de finalizar o aborto em casa. Essa é outra evidência de por que o aborto é uma questão de saúde pública: uma em cada duas mulheres finaliza o aborto em hospitais públicos.
A nova ministra conhece todas essas razões que fundamentam a tese do aborto como uma questão de saúde pública. Ela é autora de algumas delas. Fez pesquisa em hospitais com programas de aborto legal com mulheres vítimas de violência sexual. Seus estudos inspiraram uma geração de pesquisadoras, inclusive a mim. De professora a ministra, há uma diferença significativa de lugares e posições. Mas duas origens a nova ministra não poderá esquecer. A de feminista que conhece a experiência das mulheres que abortam, os seus medos e riscos. A de professora que conhece a legitimidade da pesquisa acadêmica para as políticas públicas do Estado. O aborto é uma questão de saúde pública e quem diz isso não é só a nova ministra, mas as mulheres e a ciência.

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