(Mônica Manir, de O Estado de S. Paulo) Bastidores do mais importante julgamento do Supremo Tribunal brasileiro
Na curva de acesso ao STF, o taxista dá seu veredicto: “A senhora não vai conseguir entrar vestida desse jeito, não”. O “desse jeito” era um vestido com mangas até o meio do braço e comprimento até a patela, preto como azeviche, que insinuava a proeminência das minhas clavículas. “Nem com este xale?”, inquiri, enrolando uma echarpe no ombro. “Sei não, já deixei muita mulher aqui que mostrava o pescoço e ficou na porta sem solução”, afirmou, assinando o recibo da corrida. “Mas Deus é mais, a senhora há de conseguir.”
A fila exibia de tudo, cobertos e descobertos, e quem não parecia sóbrio o suficiente para peitar o cerimonial arrumou um casaco ou voltou pra casa. Os autorizados passamos por um raio X ao lado da entrada central, bloqueada por um busto da Justiça esculpido por Alfredo Ceschiatti. Já no plenário, e apesar dos 15 minutos de atraso, nem sombra dos ministros. Mas um homem de toga circulava na frente das câmeras da TV Justiça. Era Luciano Alencar da Cunha, representante da Associação Jurídic0-Espírita de Minas Gerais, que pleiteava dar a palavra pró-vida. Queria concorrer com Luís Roberto Barroso, defensor da ação da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), que motivara o julgamento da interrupção da gestação de fetos sem cérebro. Barroso tinha direito à sustentação oral do que emergia como a mais importante decisão da história da Corte, nas palavras do presidente Cezar Peluso, que aos 30 minutos do primeiro tempo adentrou o recinto depois que uma sirene instou a plateia a ficar de pé.
Atrás dele vieram o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, o escrivão Luiz Tomimatsu e mais nove ministros, todos seguidos pelos seus respectivos “capinhas”, meirinhos que vieram ao mundo para servir. Paramentados com minipelerines pretas, eles ajudam os ministros a vestir as togas, trazem-lhes o café, levam a xícara usada, carregam a papelada do processo, ajeitam o laptop, ouvem e dizem coisas ao pé do ouvido, num vaivém ao mesmo tempo esvoaçante e silencioso. Nesse primeiro momento, puxam as cadeiras dos ministros como garçons. Um capinha está de folga, o de Dias Toffoli, que se declarou impedido de votar neste julgamento por ter participado do processo quando advogado geral da União e por ter emitido parecer a favor da legalidade da interrupção da gestação de feto anencéfalo. O escrivão anuncia quase inaudivelmente o que será julgado – a ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 54 – e o presidente Cezar Peluso resmunga o nome de Luís Roberto Barroso, que então se posiciona de frente para o tablado e de costas para a audiência, onde uma legião de celulares, iPads, iPods, MacBooks, Dells e singelos post its passa a agir na surdina.
Barroso centra sua sustentação “na tortura psicológica que é sair da maternidade com um pequeno caixão e ainda secar o leite produzido para ninguém”. Afirma que estamos atrasados, “a descriminalização desse caso é a posição de todos os países democráticos do mundo” e enumera Canadá, EUA, França, Espanha, Japão. Também insiste que a interrupção terapêutica de gestação de feto anencéfalo não é aborto porque o cérebro do feto nem sequer começa a funcionar. “Então não há vida em sentido técnico e jurídico. De aborto não se trata.”
Por aí segue sua argumentação, seguida da do procurador-geral da República em linha semelhante, que enfatizou a confortável certeza médica sobre o diagnóstico de anencefalia e que a interrupção desse tipo de parto é absolutamente atípica. Optou Roberto Gurgel por sustentar o parecer que defende a liberação do aborto de anencéfalos, embora lembrando que o assunto é tão polêmico que sua própria instituição chegou, em momentos díspares, a emitir dois pareceres contrários.
Peluso rezinga então o nome do relator Marco Aurélio, que começa o que se estenderia por quase duas horas e meia de voto favorável à permissão do aborto de anencéfalos, sem que Peluso lhe dirigisse o olhar. Nesse meio tempo Joaquim Barbosa já havia dado uma canseira no seu capinha. Ficara de pé apoiado no espaldar da poltrona, sentara numa cadeira ergonômica de encosto azul, voltara a ficar de pé com uma das solas sobre um suporte de madeira, sentara na poltrona tradicional e então saíra de cena, talvez para tentar aliviar no gabinete sua radiculite do plexo lombar.
O carioca Marco Aurélio centrou fogo na laicidade do Estado. “Concepções religiosas não podem guiar as decisões estatais, devendo ficar circunscritas à esfera privada” – apesar de a expressão “Deus seja louvado” vir impressa em todas as notas de dinheiro do nosso país, até nas mais recentes, lembra ele -, o que levou alguns a abrir a carteira para checar a veracidade do fato. Enquanto falava do avanço da medicina, “avanço que me permite saber que serei avô de Rafaela”, a menina Vitória de Cristo chega no colo da mãe, Joana Croxato. Vitória, com 2 anos e 6 meses, tem acrania. O diagnóstico foi dado na 12ª semana de gravidez e seus pais resolveram levar a gestação a termo. Os três lá estavam a convite do Movimento Brasil sem Aborto, sentaram-se de frente para os ministros e Joana ficou acariciando a cabeça da filha, cuja calota coberta de cabelos foi fechada por cirurgia.
O ministro Ayres Britto fita longamente a criança, a ministra Rosa Weber também. E, seguindo a ordem dos mais novos para os decanos a partir do relator, ela, a gaúcha Rosa, passa a explanar seu voto dizendo que fora visitada por Vitória de Cristo e sua mãe no dia anterior. A ministra, com certo nervosismo, passa a questionar a falácia naturalista e os paradigmas científicos, menciona Plutão, que foi planeta e deixou de sê-lo, termina dizendo que o feto anencéfalo não constitui vida segundo o direito jurídico e vira motivo de chacota em tweets, que dizem que Rosa foi a Plutão e voltou.
O próximo na lista seria Luiz Fux, o ministro de vasta cabeleireira que alguns juram ser peruca e cujo voto de minerva escalpelou a Lei da Ficha Limpa em 2010. Mas Joaquim Barbosa, num raro momento de presença, com um lenço branco à mão, atropelou a ordem da antiguidade e deu seu voto, curto e grosso, dizendo que “seria contrassenso chancelar a liberdade no caso de aborto resultante de estupro e vedar no casos de malformação fetal gravíssima”. Saiu para não mais voltar – e votar.
Fux, preocupado em afirmar que o direito ao aborto no caso de anencéfalo era isso, um direito, e não uma obrigação de abortar, foi dos que mais citaram artigos científicos. Os ministros, aliás, receberam uma pasta de referências da biblioteca do Supremo baseada nas seguintes palavras-chave: aborto eugênico, aborto, anencefalia, biodireito, bioética, infanticídio e nascituro. Estavam ali mencionadas 110 obras, 225 periódicos, 34 artigos de jornais, 6 textos na base de dados HeinOnline, 8 na Scielo, 3 projetos de lei e acórdãos de jurisprudência. A maioria mencionou as audiências públicas promovidas pelo STF sobre o assunto em 2008, quando foram ouvidas 25 instituições, além de ministros de Estado e cientistas. Alguns magistrados rasgaram o verbo em italiano, outros em inglês, alguns em alemão, quase todos em latim. E usaram poetas, como Chico. Cármen Lúcia e Ayres Britto praticamente recitaram juntos “A saudade é o revés de um parto / é arrumar um quarto / de um filho que já morreu”.
Procuradora-geral no governo Itamar Franco, Cármen Lúcia foi lapidar: “O útero é o primeiro berço de todo ser humano. Quando o berço se transforma em pequeno esquife, a vida se entorta”. Acrescentou no seu voto um personagem até então não mencionado, o pai da criança, e por isso foi o único parecer que emocionou Rosivaldo, personagem do documentário Uma História Severina, da antropóloga Debora Diniz e da jornalista Eliane Brum. Rosivaldo é marido de Severina e ambos travaram uma batalha de sete meses para abortar um feto anencéfalo por liminar em 2005. Estavam os dois e o único filho na plateia, vindos de Chã Grande, no brejo pernambucano, trazidos pela Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero.
Às 18h, Ricardo Lewandowski toma o microfone para fechar o primeiro dia de votação com voto contrário aos anteriores. O carioca bate o martelo em que “não é dado aos integrantes do Judiciário promover inovações no ordenamento normativo como se parlamentares eleitos fossem”. Essa atribuição, diz ele, caberia ao Congresso, “que nunca fez parecer sobre incluir o feto anencéfalo entre os abortos permitidos”. Peluso, que dessa vez deixara o computador de lado para prestar evidente atenção ao voto, encerrou os trabalhos e anunciou a segunda rodada no dia seguinte, a partir das 14h.
Antes de se retirar pelos fundos em direção ao gabinete, Marco Aurélio desce do tablado para dar entrevistas e cumprimentar os plantadores de brócolis Rosivaldo e Severina. Aproveita e comenta o que já corria na rede: “Acabaram de representar contra mim!” Falava da abertura de processo por crime de responsabilidade requerida por parlamentares das bancadas evangélica e católica do Congresso a Sarney alegando que Marco Aurélio emitira juízo de valor em entrevistas dadas ao SBT e à Veja, em 2008, sobre o aborto de fetos anencéfalos. Teria, com isso, antecipado seu voto no julgamento. “Se precisar de advogado, estou aqui”, prontificou-se Luís Roberto Barroso, também defensor de Cesare Battisti.
Casa de Suplicação. Bem menos concorrido que no primeiro dia, o STF, antiga Casa de Suplicação, mostrou-se esvaziado do lado de fora. A vigília de terça para quarta não se repetiu de quarta para quinta e um buzinaço econômico pela causa dos poupadores acabou embalando o voto de Ayres Britto. Sua frase que mais reverberou foi: “Se todo aborto é uma interrupção de gravidez, nem toda interrupção de gravidez é um aborto”. Mas ele também se saiu com “O grau da civilização de uma sociedade se mede pelo grau de liberdade da mulher” e “A natureza também se destrambelha”, aí copiando Tobias Barreto, uma de suas fontes alheias ao calhamaço da biblioteca. O sergipano Ayres Britto fala muita coisa de pronto e, por isso, não se conseguia a íntegra do seu discurso na internet.
Um desses repentes foi um aparte a Gilmar Mendes, quando este afirmou, coçando o gogó, que “as entidades religiosas são quase que colocadas no banco dos réus, como se estivessem a fazer algo indevido”. Gilmar disse que os espíritas deveriam participar do debate, no que foi aplaudido visualmente pelo representante da Associação Jurídico-Espírita de Minas Gerais, e que “é preciso ter muito cuidado com faniquitos anticlericais”, porque “daqui a pouco nós talvez tenhamos a supressão do Natal, a revisão do calendário gregoriano ou a demolição do Cristo Redentor”. Alguns da plateia riram, mas silenciaram com o aparte de Britto: “O Cristo in natura talvez valha mais que o Cristo pasteurizado”.
Gilmar não votou contra o direito de aborto de anencéfalo, mas a favor, por entender não parecer tolerável que se imponha à mulher tamanho ônus na falta de um quadro legal para resolver a questão. Sua ressalva disse respeito ao atendimento médico dessa mulher, dado que seu vizinho de mesa, Celso de Mello, também destacou. Celso, avesso a computadores, tinha umas 30 pastas de papel in natura atrás de si com faixas escritas STF amarrando-as todas.
Na cabeceira da Corte, em seu provável último julgamento antes de entregar o posto a Ayres Britto no Dia do Índio, Cezar Peluso clarificou uma posição pré-sabida, a de que seria voto contra nesse julgamento. Por diferentes motivos: porque “o feto é sujeito de direito, e não coisa nem objeto de direito alheio”, porque “não é possível detectar o grau de anencefalia e outras deformidades graves”, porque a gravidez de anencéfalo “não é sofrimento injusto, como a gravidez fruto do estupro”, porque “é assombrosa a semelhança entre aborto de anencéfalo e prática eugênica”. Atropelando algumas últimas letras, classificou a situação como “lamentável, não podendo sequer encerrar dizendo que a douta maioria tinha razão”.
Ainda se seguiria uma fase tensa, com os ministros discutindo se seria o caso de incluir regras para a implementação da decisão, como um “desde que a mulher seja atendida por três médicos, quatro até”, quando o relator afirmou que a maioria já havia decidido pela liberação da interrupção da gravidez de feto sem cérebro. Assim apenas. A Peluso restou ler o acórdão. Não sem antes ouvir os berros de Maria Angélica de Oliveira, autointitulada participante de uma associação de espíritas, que, sentada na primeira fila, chamava os defensores da interrupção de assassinos. Altivos, em ordem regimental, lá se foram os dez com seus capinhas esvoaçantes a tiracolo.
Acesse em pdf: No tablado da Corte, por Mônica Manir (O Estado de S. Paulo – 15/04/2012)