(Ligia Martins da Almeida, colaboradora do Observatório da Imprensa) Desta vez a imprensa fez seu papel: deu voz a quem era contra ou a favor, discutiu os aspectos médicos e chegou até a informar – embora menos do que deveria – sobre um medicamento que evitaria a formação de fetos anencéfalos. O assunto, que movimentou jornais, revistas e emissoras de TV foi o julgamento, no Supremo Tribunal Federal (STF), da legalização do aborto de fetos anencéfalos. Que, como já se sabe, deixou de ser considerado crime.
Como acontece sempre que o aborto entra em pauta, a discussão foi entre os religiosos e os que se concentram na saúde da mulher. Mas, pelo menos desta vez, as mulheres foram ouvidas. Tanto as que levaram a gravidez até o fim (contra sua própria vontade ou que optaram por deixar a criança nascer) como as que interromperam a gravidez. Naturalmente a grande exceção – a menina que viveu quase dois anos – foi explorada pela TV, com entrevista da mãe e imagens da criança no seu colo. Em suma, não faltou o lado sensacionalista.
Além dos depoimentos das mães e dos juristas, tivemos a oportunidade de ler até os depoimentos de médicos que se sentem discriminados – entre os colegas – por fazerem o aborto amparados pela lei.
Mas o grande o destaque foram, sem dúvida, as sentenças dos juízes que votaram a favor, apresentadas resumidamente em quadros destacados nos jornais:
** “O feto anencéfalo é incompatível com a vida. É desproporcional proteger o feto que não sobreviverá em detrimento da saúde mental da mulher.” (Marco Aurélio Mello, relator)
** “ Não há interesse em tutelar uma vida que não vai se desenvolver socialmente. Proteger a mulher nesse caso é proteger sua liberdade de escolha.” (Rosa Weber)
** “Ao redigir os artigos do Código Penal sobre aborto, o legislador não sabia que seria possível, no futuro, identificar a anencefalia ainda na gestação. É uma questão de saúde pública.” (Luiz Fux)
** “O feto anencéfalo não tem viabilidade de desenvolver uma vida extrauterina. A anecefalia é um trauma para todos, não só para a gestante.” ( Carmen Lucia)
“Nem toda interrupção de gravidez é um aborto para fins penais. O martírio é voluntário e não deve ser imposto à gestante.” ( Carlos Ayres Britto)
Mais discussão
Encerrada a votação, com a decisão de que o aborto deverá ser praticado pelo SUS, sem custo para as pacientes, o assunto entra num novo patamar, que certamente não vai mobilizar a imprensa como aconteceu durante o julgamento. A ponto de alguns veículos, como o Jornal do Brasil, terem feito uma pesquisa online entre seus leitores para saber se eles eram favoráveis ou não ao aborto de fetos anencéfalos (69% dos leitores votaram contra).
Resta agora a regulamentação do procedimento que deverá ser autorizado depois de avaliação médica. O Ministério da Saúde garantiu que esse ponto estará resolvido no máximo em 60 dias. E a imprensa, que deu tanto destaque ao assunto, deverá ficar atenta – e não, como acontece em tantos outros casos, deixar o tema cair no esquecimento.
Em reportagem publicada na edição de sexta-feira (13/4) do Estado de S.Paulo fica claro que o julgamento do STF regulamenta, mas não resolve o problema:
“Profissionais de saúde desconhecem as situações em que a legislação brasileira permite o aborto. Pesquisa do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de São Paulo (USP), feita na capital, mostra que 97% dos enfermeiros entrevistados; 90% dos psicólogos, nutricionistas e fisioterapeutas; e 32% dos médicos não sabem quando o procedimento é legal.”
A autora da pesquisa, a psicóloga Gláucia Rosana Guerra Benute, explica:
“O aborto é um tema difícil até para os profissionais da saúde. O desconhecimento é responsável por atitudes discriminatórias e julgamentos das pacientes”.
O coordenador do Ambulatório de Violência Sexual e Aborto Legal do Hospital Pérola Bayton, Jeferson Drezett (entrevistado na mesma reportagem), atribui o desconhecimento à falta de capacitação dos profissionais. E afirma:
“Não adianta apenas escrever normas. É preciso capacitar, treinar e orientar os profissionais sobre o tema.”
Ao mesmo tempo em que treina os profissionais para atender os casos de aborto previstos em lei, o Ministério da Saúde poderia usar o interesse da mídia em falar do assunto para discutir a prevenção desta e de outras doenças que afetam as mulheres, grávidas ou não.
[Ligia Martins de Almeida é jornalista]
Acesse em pdf: O julgamento sobre fetos anencéfalos, por Ligia Martins de Almeida (Observatório da Imprensa – 17/04/2012)
Leia também:
“Por todo o Brasil, artigos foram publicados, entrevistas realizadas e debates, reunindo em maior ou menor posições antagônicas, televisionados e difundidos à exaustão. Dificilmente, entretanto, conseguiu fugir-se a mera polarização, como se diante de um assunto tão complexo restassem apenas duas opções: a concordância ou a discordância, sendo aparentemente irrelevante sacrificar conceitos tão imprecisos como os limites da vida, da consciência ou a dignidade humana.” – Uma fábrica de imcompreensões, por Lucio Carvalho (Observatório da Imprensa – 17/04/2012)