19/02/2012 – Urnas reveladoras, por Fátima Jordão e Paula Cabrini

19 de fevereiro, 2012

(O Estado de S. Paulo) ‘O tema do aborto como tática eleitoral em 2010 não deu nem tirou votos, mas mostrou que há espaço para um debate mais iluminista’, analisam a socióloga Fátima Jordão, especialista em comunicação, e Paula Cabrini, graduanda em Ciências Sociais pela USP. Leia a seguir trecho de um capítulo do livro produzido pelo Consórcio Bertha Lutz sobre as Mulheres e as Eleições de 2010, coordenado por Celi Pinto, José Eustáquio Alves e Fátima Jordão, com lançamento previsto para o primeiro semestre de 2012.


Assunto de saúde pública, bandeira de religiosos e um dos focos do feminismo, a polêmica sobre o aborto já foi pelo menos três vezes usada como estratégia em campanhas eleitorais, principalmente frente a candidaturas progressistas: a corrida presidencial de 1989 (Collor x Lula), a municipal de São Paulo em 2000 (Maluf x Marta) e a também presidencial de 2010 (Dilma x Serra). Mas em nenhum desses casos foi debatida com a sociedade a conveniência ou não de mudança da lei que regula o aborto no Brasil. Ao contrário, as campanhas conservadoras tentaram atingir os adversários e associá-los a um termo considerado negativo junto à população. Para efeito de análise, nos debrucemos sobre 2010.

O que se pôde observar naquele ano foi que o tema do aborto atingiu outro patamar na opinião pública. A tática eleitoral de apelar para essa questão teve tal intensidade que ultrapassou os limites restritos da campanha, da mídia, chegando às conversas privadas em família e em grupos de eleitores. Daí a hipótese que defendemos de que o aborto tenha deixado de ser palavra ou tema interditado na sociedade brasileira.

Não se trata de afirmar que a percepção ou postura dos brasileiros mudou significativamente. Diante de um debate público, esses acontecimentos eleitorais talvez venham a constituir um marco na discussão sobre a legalização do aborto no País. O Brasil teve, ainda que de forma indireta, a oportunidade de expressar sua opinião através das urnas sobre o uso oportunista da questão.

No período que antecedeu a campanha eleitoral, as posições assumidas pelos então candidatos já aqueciam as discussões e nutriam a polêmica que se intensificaria mais tarde. Dilma Rousseff, em 2009, ainda na condição de pré-candidata e ministra da Casa Civil, declarou posição favorável à legalização do aborto em entrevista para uma revista feminina. Depois, com a ofensiva da campanha de José Serra e em resposta a pressões da igreja, reposicionou-se e passou a se declarar contrária a qualquer mudança na legislação. Ainda assim, durante toda a campanha Dilma manteve a posição de que a descriminalização deveria ser tratada como assunto de saúde pública e no Legislativo.

José Serra, quando ministro da Saúde, foi responsável pela implementação da norma técnica para a realização de aborto legal no SUS. Mas na campanha disse considerar o aborto “uma coisa terrível” e que, “num país como o nosso, se liberaria uma verdadeira carnificina” caso fosse legalizado. Talvez tenha sido o que mais investiu na bandeira antiaborto, sobretudo no segundo turno. Articulou ações com grupos religiosos a fim de intensificar a percepção de que Dilma promoveria mudanças na legislação.

Mas, tendo em vista os desdobramentos decorrentes da inserção do aborto na agenda eleitoral e a maneira como o tema fora tratado pelas campanhas e pela imprensa de forma geral, questionamos a hipótese de que a polêmica em torno do aborto tenha influenciado efetivamente os votos dos eleitores, sobretudo no primeiro turno da eleição. O embate permitiu o desvendamento de novos campos de debates e de conflitos e a possibilidade de se ultrapassar a formulação “a favor” x “contra” a descriminalização.

Por exemplo, uma pesquisa do Ibope/Consórcio Bertha Lutz durante as eleições mostrou que os eleitores abriram brecha para uma postura de reflexão frente à questão: 42,5% não tinham uma posição firmada quanto ao direito de a mulher decidir pela continuação de uma gravidez ou não. Ou seja, o eleitorado estava, de fato, aberto para um debate mais legitimo e substantivo.

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No período pós-eleitoral o contexto de opinião evoluiu. Perguntados sobre quem deveria decidir se uma mulher pode ou não interromper uma gravidez, os brasileiros mostraram posição progressista. Em pesquisa do Ibope/Católicas pelo Direito de Decidir, a grande maioria (61%) opinou por uma decisão pessoal, a da mulher envolvida; 15% atribuíram a decisão a instâncias institucionais (governo, Congresso) e 20% indicaram que a decisão provavelmente não possa ser dada por ninguém. A interrupção da gravidez para essa parcela de brasileiros não é admissível, o que nos permite presumir que esses 20% são o núcleo duro de resistência à descriminalização do aborto no País.

Apesar da intensidade da polêmica, as evidências empíricas observadas ao longo de todo o período de campanha nos levam a crer que o efeito eleitoral, se ocorreu, se deu em intensidade insuficiente para influenciar o voto. Os indicadores sugerem que Serra não se beneficiou eleitoralmente ao atacar a adversária nesse terreno. E Dilma nada perdeu entre segmentos com posturas diversas frente à flexibilização do aborto legal. Pesquisa Ibope realizada após o segundo turno, em 1º de novembro, demonstrou a distribuição de votos declarados segmentados por religião. Em todos os segmentos Dilma estava na dianteira, ainda que com menor margem, até entre os evangélicos.

No entanto, o dado mais contundente era o que demonstrava a evolução da intenção de voto das mulheres. No segundo turno os votos femininos foram estratégicos. Em torno do dia 15 de outubro elas se decidiram por Dilma (até então Serra liderava a disputa entre as eleitoras). Essa data coincide com o pico de intensidade da polêmica em torno do aborto. A sugestão dos dados é de que, entre as mulheres, a tática adversária não influiu ou pode ter até beneficiado Dilma.

O mais certo, porém, é que, em resumo, os lances do jogo eleitoral em 2010 não agregaram nem votos a candidatos, nem benefícios aos discursos conservadores – porque derrotados -, nem à sociedade em geral. A questão do aborto naquelas eleições presidenciais sinalizou a possibilidade de continuação e aprofundamento de um debate amplo e mais aberto. A espiral do silêncio sobre a polêmica da descriminalização diminuiu. Já há luz suficiente para uma discussão pública mais iluminada e mais iluminista. Esse talvez seja o anseio de muitas brasileiras, tão bem expressado por uma jovem em pesquisa qualitativa realizada em outubro de 2010 pelo Ibope/Consórcio Bertha Lutz:

“A meu ver, o aborto já é uma coisa legalizada, o que está faltando é um pouco de dignidade para a mulher quando ela precisa ir ao médico fazer a curetagem, porque ela é tratada feito um cachorro. Se a mulher tem dinheiro, ela vai a uma clínica, faz o aborto e vem para casa; quando a mulher é pobre, ela faz um aborto de qualquer jeito em casa e quando vai ao hospital ela é mal tratada. O aborto já existe, então tem que encarar como realidade, o que tem que ter é uma política pública que ajude a mulher”. 

FÁTIMA JORDÃO É SOCIÓLOGA , ESPECIALIZADA EM COMUNICAÇÃO , PAULA CABRINI É GRADUANDA EM CIÊNCIAS SOCIAIS PELA USP, ONDE INTEGRA O GRUPO DE ESTUDOS EM TEORIA DO COMPORTAMENTO ELEITORAL. 

Este artigo é trecho de um capítulo do livro do Consórcio Bertha Lutz Mulheres e Eleições de 2010, coordenado por Celi Pinto, José Eustáquio Alves e Fátima Jordão, com lançamento previsto para o primeiro semestre de 2012

Acesse em pdf: Urnas reveladoras, por Fátima Jordão e Paula Cabrini (O Estado de S. Paulo – 19/02/2012)

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