(Renata Mariz, do Correio Braziliense) Correio resgata a trajetória das discussões, iniciadas há 10 anos em Brasília, que culminaram na legalização do aborto de fetos sem cérebro
Em meio ao juridiquês das sessões do Supremo Tribunal Federal (STF), a frase clara e direta selou a vitória. “A interrupção da gravidez é atípica e não pode ser tachada de aborto, criminoso ou não”, declarou Celso de Mello, o último dos oito ministros que decidiram a favor da legalidade da antecipação do parto quando o feto não tem cérebro, no último dia 12. Exatos 10 anos antes, mais precisamente em 11 de abril de 2002, começava, em Brasília, o processo que culminaria no julgamento histórico da Corte.
Naquele dia, o promotor de Justiça Diaulas Costa Ribeiro, fundador e dirigente do primeiro serviço institucional do país para atender gestantes com diagnóstico de anencefalia, afirmou que já havia autorizado 61 abortos. A declaração rendeu uma demissão como professor, seis processos, discursos inflamados no Legislativo chamando-o de assassino e quase uma expulsão do Ministério Público do DF. Mas também funcionou para reunir um time disposto a entrar na briga pelo direito de decisão da mulher.
“O protagonismo do Diaulas é absolutamente histórico nesse processo”, classifica a antropóloga Debora Diniz, professora da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisadora da Anis — Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero. Com o promotor, a especialista em bioética, de 42 anos, decidiu que era preciso criar um termo que substituísse “aborto eugênico” e “aborto seletivo”, usados até então. A dupla mergulhou em estudos de literatura científica, semântica e semiologia.
Uma vez por mês, ela visitava a unidade do Hospital Regional da Asa Sul para ouvir mulheres que interrompiam a gestação de anencéfalos. “O que elas mais falavam era em antecipar o sofrimento, antecipar a dor. A palavra era “antecipação””, conta Debora. Nas discussões semanais, Diaulas insistia nas referências à medicina, à terapia e aos cuidados. O resultado surgiu em uma conversa ao telefone. “Chegamos à “antecipação terapêutica do parto”, uma expressão única no mundo, que foi usada pelo Supremo para dar sua decisão”, diz Diaulas.
O estudo de Debora e Diaulas sobre o tema, que não se restringiu à nova terminologia, resultou no lançamento de um livro, que teve de ser feito com escolta policial, no Martinica Café, na Asa Norte, dada a polêmica que o assunto sempre despertou. Uma semana antes, começava o caso concreto de uma mulher impedida pelo Judiciário de interromper a gestação de anencéfalo. Gabriela de Oliveira Cordeiro morava em Teresópolis (RJ), mas o caminho dela se encontraria com o do grupo de Brasília.
Habeas corpus
A jovem de 19 anos, depois de ter o pedido negado em primeira instância e autorizado na segunda, foi surpreendida por um habeas corpus em favor do feto, impetrado pelo padre Luiz Carlos Lodi da Cruz, de Anápolis (GO), no Superior Tribunal de Justiça (STJ). A Corte derrubou a decisão anterior, com Gabriela já no sexto mês de gravidez. No mesmo período, fim de 2003, uma reunião histórica ocorreu no 5° andar do Ministério Público do DF, em sala cedida por Diaulas. Foi quando o procurador regional da República no Rio de Janeiro, Daniel Sarmento, teve a ideia de propor uma ADPF.
Ingressar com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, a tal ADPF, seria uma das poucas chances de tentar provocar o Supremo a descriminalizar o aborto de anencéfalos. Mas havia, naquele início de 2004, com o Judiciário voltando do recesso, algo mais importante para resolver. A Anis, entidade à qual Debora é ligada, entrou no STF com um habeas corpus em favor de Gabriela. Um caso concreto nunca havia chegado à mais alta Corte e poderia ter abreviado a decisão tomada no último 12, mas Maria Vida, nome dado para a criança, já tinha nascido, sobrevivido por sete minutos, e morrido.
Os ministros foram informados da ocorrência do parto em pleno julgamento, o que levou ao arquivamento do habeas corpus em questão. A ideia da ADPF tornava-se cada vez mais urgente. Como poucos tinham conhecimento desse instrumento no direito, Debora procurou Luis Roberto Barroso, famoso constitucionalista, acompanhada de especialistas em medicina. “Eu nunca tinha ouvido falar em anencefalia. Mas a descrição que elas me fizeram conquistou minha simpatia e meu coração”, lembra ele. Três meses depois de estudos intensos, a ADPF foi ajuizada e ganhou o número 54 no Supremo, encerrando a história de como nasceu uma lei que revolucionou o direito da mulher.
“A interrupção da gravidez é atípica e não pode ser tachada de aborto, criminoso ou não”
Celso de Mello, ministro do STF
“Até hoje há estados sem equipes de saúde credenciadas pelo Ministério da Saúde para fazer o procedimento. E muitas que existem formalmente não funcionam”
Diaulas Ribeiro, promotor de Justiça
Acesse em pdf: Os bastidores de uma lei histórica (Correio Braziliense – 21/04/2012)