(Texto de Lilia Diniz, do Observatório da Imprensa/Vídeos da TV Brasil) Um dos mais arraigados tabus da sociedade brasileira, o aborto, voltou à pauta. Em 12 de abril, por 8 votos a 2, em um julgamento considerado histórico, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu autorizar a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos. Para a maioria dos ministros, a má-formação do cérebro e do córtex do bebê inviabiliza a vida após o parto, por isso o anencéfalo seria um natimorto. Com a decisão, a mulher e o médico que realizarem o procedimento não serão punidos. A legislação brasileira permitia a interrupção da gravidez apenas em casos de estupro ou de risco de vida para a mãe.
A ação foi proposta em 2004 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) com base no princípio de que, em casos de anencefalia, não há potencialidade de vida. Durante o julgamento, entidades religiosas protestaram em frente ao STF. Para a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a ética proíbe a eliminação de um ser humano e não aceita exceções. Um dos principais argumentos do relator do processo, ministro Marco Aurélio Mello, é o de que o Estado brasileiro é laico, portanto livre de pressões religiosas. O Observatório da Imprensa exibido ao vivo na terça-feira (24/4) discutiu o comportamento da mídia diante da discussão do aborto e do laicismo do Estado brasileiro.
A Constituição de 1988 proíbe a União, os estados e municípios de estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-las, impedir o funcionamento ou manter relações de dependência ou aliança. Mas, na prática, há associações entre o Estado e instituições religiosas e são concedidos privilégios a determinados credos. Em 2008, foi firmado um tratado entre o governo brasileiro e a Santa Sé que confere formato jurídico às relações entre o Executivo brasileiro e a igreja católica. O acordo prevê o ensino religioso nas escolas públicas, com presença facultativa, e a possibilidade da anulação do casamento civil no caso o matrimônio religioso ser desfeito.
Para discutir este tema, Alberto Dines recebeu no estúdio do Rio de Janeiro Nilcéa Freire, ex-ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres. Médica, Nilcéia foi professora e reitora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); atualmente, é representante da Fundação Ford no Brasil. Em São Paulo, o programa contou com as presenças de Roseli Fischmann e Jacira Vieira de Melo. Roseli é doutora em Filosofia e História da Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e estuda a tolerância e o combate à discriminação. Jacira é diretora executiva do Instituto Patrícia Galvão – Mídia e Direitos, especialista em Comunicação Social e Política nas Perspectivas de Gênero e Raça e mestre em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da USP.
Uma discussão embargada
No editorial exibido antes do debate ao vivo, Dines ressaltou que o leitor precisa ser abastecido pela imprensa com avaliações para ser capaz de montar juízos e tomar decisões. Para Dines, os jornais não explicaram o porquê de a decisão do Supremo ser considerada histórica: “A votação ganhou dimensão histórica por tratar-se de decisão judicial irrevogável e, sobretudo, porque é um avanço na direção do Estado laico e secular. A conotação laicista da decisão no noticiário ficou subentendida, subalterna, escondida”. Dines criticou também o pouco destaque que a mídia deu ao voto do ministro Marco Aurélio Mello. “O Estado de direito é imperiosamente laico e a imprensa, se pretende apresentar-se como democrática, deve ser o sustentáculo deste laicismo”, disse o jornalista.
A reportagem exibida antes do debate no estúdio entrevistou o advogado Luis Barroso, representante da CNTS. Para Barroso, a decisão do Supremo já deflagrou um debate importante na sociedade sobre a liberdade reprodutiva da mulher e o poder do Estado de obrigá-la a levar a termo uma gestação indesejada. “A nossa posição é apenas a de que não se deve criminalizar a posição divergente. Esse é um debate de valores e de ideias em que o melhor argumento deve conquistar mais adesão social”, disse o advogado. Ele ponderou que Estado e religião devem ser efetivamente separados: “A religião é uma coisa muito importante na vida, mas é um espaço da vida privada. Ela não deve ser misturada com debate público nem com discurso político”.
A deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), candidata à prefeitura do Rio de Janeiro em 2009, levantou a questão do aborto e perdeu muitos votos por conta da polêmica. “Eu defendo que as pessoas não devam morrer por conta de determinadas ilegalidades. Eu defendo que exista um planejamento familiar. Eu já sofri muitas pressões por isso. Inclusive as incorretas, indevidas, baseadas em muitas mentiras, em muitas inverdades, em muitas coisas inventadas. E essas pressões prejudicam, vedam os olhos, dão miopias políticas e eu já fui muito vítima disso, de fato. Sem o direito de defesa, inclusive”, relembrou a deputada. Jandira sublinhou que religião é uma questão de foro íntimo, enquanto o Estado é de todos.
O lugar da religião na sociedade
O programa também entrevistou representantes de correntes religiosas. Hugo Cysneiros, advogado da CNBB, disse que houve uma polarização do debate. “Foi como se, de um lado, houvesse uma natureza de argumentos que são totalmente reféns de uma crença e, de outro, aqueles que seriam estritamente técnicos. E, entre eles, uma incompatibilidade. Ocorre que isso nem sempre é verdadeiro. O que nos preocupou bastante na condução desse debate pela própria mídia, é que houve uma espécie de cruzada, digamos assim, contra os argumentos da igreja”, disse o advogado. Israel Belo de Azevedo, pastor da Igreja Batista Itacuruçá-Tijuca, acredita que a pressão das religiões sobre o Estado é natural, mas o Estado precisa impedir que qualquer matriz religiosa predomine sobre as outras.
Maurício Santoro, cientista político e professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV) comentou que a maioria das decisões que têm reforçado o caráter laico do Estado emana do Poder Judiciário, e não do Congresso Nacional ou do poder Executivo: “Os políticos brasileiros têm um medo muito grande de entrar em conflito com as forças religiosas no país. Porque os poderes religiosos – as diversas igrejas brasileiras – têm muitos votos e nenhum político quer ficar marcado como alguém que não gosta de religião ou como alguém que está indo contra a religião no Brasil”.
Santoro explicou que a maior parte dos conflitos políticos contemporâneos envolvem religião e Estado, não apenas no Oriente Médio ou em regimes fundamentalistas, mas também em nações onde leis e crença andariam separados. “Os Estados Unidos são um caso à parte porque as leis americanas, desde o surgimento do país, colocam de forma muito clara a separação entre o Estado e a religião. Mas uma coisa é o que está na lei e outra são as tradições, costumes e o cotidiano político. E nesse ponto tem havido uma influência crescente da religião na vida pública americana, pelo menos desde a década de 1970”, explicou o professor.
Avanços e atrasos
No debate ao vivo, Nilcéa Freire explicou que entre os grupos religiosos há correntes que pretendem discutir a questão do aborto de forma mais ampla, como o movimento Católicas Pelo Direito de Decidir. A ex-ministra comentou que em Portugal – sociedade conservadora com grande número de católicos – houve um intenso debate sobre as diversas questões que envolvem o aborto antes de a prática ser aprovada por um plebiscito, em 2007. “Aqui no Brasil, estamos falando da questão do aborto como se estivéssemos 20 ou 30 anos atrás. Sem considerar, por exemplo, avanços do ponto de vista tecnológico e do ponto de vista científico que permitem, hoje, práticas de planejamento familiar que reduzem muito o risco e a prática do próprio aborto. Portanto, informar é o melhor caminho para que a sociedade brasileira tenha o direito de escolher o caminho que deseja seguir”, defendeu Nilcéa Freire.
A ex-ministra ressaltou que a partir da aprovação da interrupção da gravidez de fetos anencéfalos pelo STF, a questão precisa ser inserida no dia a dia dos hospitais públicos: “É preciso que, por um lado, as mulheres não tenham mais que pedir autorização e, uma vez comprovado o diagnóstico, sejam automaticamente assistidas pelo sistema público de saúde. Esse é um ponto importantíssimo porque [o sistema] precisa se preparar para dar o atendimento adequado das mulheres que vierem a tomar a decisão de interromper a gravidez nos casos de anencefalia”.
A voz das ruas
Na avaliação de Jacira Vieira de Melo, a maior lacuna da cobertura da mídia na decisão do STF foi não abordar os motivos que levaram a igreja católica – que tem no aborto a sua maior militância midiática – a recuar nesse debate. De forma atípica, a igreja não acionou as lideranças religiosas para articular manifestações contrárias mais contundentes. Nilcéa Freire acredita que, naquele momento, a “grande estrela” midiática era o processo que corria no Supremo: “Jogar água na fervura era o melhor que a igreja podia fazer, na medida de que havia uma avaliação de que [a descriminalização do aborto em casos de anencefalia] seria aprovada”. A ex-ministra destacou que a tendência do STF representava os anseios de parte da sociedade. Ao não incentivar a discussão, a igreja evitaria que o debate se estendesse para aborto de forma geral.
O debate sobre o aborto no Brasil, na opinião de Jacira Vieira de Melo, é geralmente interditado por pressões de setores específicos. Quando é travado, se dá em momentos inadequados, como em períodos eleitorais. “Foi um momento ímpar no Brasil em todos os sentidos. O debate se deu no STF, em uma casa onde a separação do Estado com convicções religiosas é muito clara. O Supremo debate a partir de uma visão laica, se pautando pela Constituição e por questões jurídicas. E mais: foi um debate racional. Aí, a mídia cobre”, disse Jacira. Para a diretora-executiva do Instituto Patrícia Galvão, a imprensa lida melhor com pautas institucionais, em contraponto com reflexões sobre liberdades individuais. Ao silenciar sobre outras dimensões da questão do aborto no Brasil – como as mortes em clínicas clandestinas e a barganha política que envolve o assunto – a mídia acaba se tornando conivente com a situação.
Igualdade perante a lei
Roseli Fischmann pontuou que a dificuldade da mídia em discutir a laicidade do Estado acaba prejudicando o esclarecimento da população sobre o tema. “A relevância dessa separação vem do fato de ela possibilitar que todos os cidadãos e cidadãs sejam tratados em condições de igualdade”, argumentou a professora. Roseli explicou que as religiões não podem querer liberdade dentro do Estado e ao, mesmo tempo, tentar que o Estado tome posição em casos que, na prática, são mais de controle da fé do que propriamente ligados ao direito de cidadania de seres humanos livres e iguais.
Dines comentou que, apesar de o ministro Marco Aurélio Mello ter dedicado uma parte substancial de seu voto a examinar o caráter secular do Estado brasileiro sob uma perspectiva histórica, a mídia não deu importância à questão. “O pessoal supõe que defender a separação entre o Estado e as religiões é como se estivesse atacando as religiões. Mas isso não ocorre”, garantiu a Roseli Fischmann. A pesquisadora ressaltou que a liberdade de culto no Brasil foi cerceada por quase quatro séculos.
Desde a chegada dos portugueses ao Brasil até a República, as manifestações religiosas – com exceção do catolicismo – poderiam ocorrer apenas a portas fechadas. “As religiões vão na linha de uma doutrina, de uma revelação. A pessoa que creia nisso não é obrigada pelo Estado laico a seguir algo diferente. O Estado não pode assumir como crime aquilo que as religiões têm como pecado. E as religiões não são obrigadas a dizer que não é mais pecado se o Estado deixou de considerar como crime. Acho que não é tão difícil, mas parece que ainda há um tabu”, ressaltou Roseli.
Acesse em pdf: A cobertura de um julgamento histórico (Observatório da Imprensa – 27/04/2012)