(Brasil de Fato) Em 1990, no 5° Encontro Feminista Latino-americano e Caribenho, instituiu-se o 28 de setembro como o Dia Latino-americano e Caribenho pela Descriminalização do Aborto. Desde então, nessa data, o movimento feminista toma as ruas para lutar por esse direito. Em 2013 não será diferente: diversos estados do Brasil programam ações de rua para o dia 28 em defesa da legalização do aborto.
O Brasil está entre os países com a legislação mais restritiva em relação ao aborto no mundo – que correspondem, não por acaso, aos países do hemisfério sul. Na maioria de nossos vizinhos latino-americanos e caribenhos o aborto não é legalizado, exceto Cuba, Cidade do México e, recentemente, Uruguai. Neste último, desde a legalização em dezembro de 2012, até maio de 2013, foi zero o número de mortes maternas por abortos, além de ter sido reduzida a quantidade de abortos por ano de 33 mil para 4 mil – o que demonstra os efeitos positivos de retirar a prática do aborto da condição de crime e tratá-lo como questão de saúde pública.
Enquanto isso, em nosso país, o aborto é crime para a mulher que o pratica e para a pessoa que a ajudar, de forma direta ou indireta. O Código Penal vigente, de 1940, permite o aborto apenas nas situações de gravidez em que há risco de morte para a mulher e em caso de estupro, e, em 2012, o Supremo Tribunal Federal aprovou a terceira situação na qual o aborto não é considerado crime no país: quando o feto é anencéfalo/inviável. O primeiro serviço de abortamento legal só foi criado em 1989, em São Paulo, e mais de duas décadas depois, o acesso a este direito ainda é restrito: atualmente, a maioria dos serviços ̶ cerca de 60 para todo o país ̶ está disponível apenas nas grandes cidades, e nem todos oferecem atendimento de forma adequada.
O aborto é uma realidade comum, mesmo que criminalizada. Poucas pessoas não conhecem uma mulher que já fez um aborto. Isso faz com que esta prática precise ser compreendida e encarada. Na “Pesquisa Nacional de Aborto”, realizada em 2010 pelo Instituto ANIS / Universidade de Brasília e premiada pela Organização Pan-Americana de Saúde, revelou-se que 1 a cada 5 mulheres brasileiras urbanas já realizaram aborto ao menos uma vez e que a religião não é determinante na opção pelo aborto, já que, das mulheres que o realizaram, 2/3 declararam-se católicas; 1/4, protestantes ou evangélicas, e 1/20 possuem outra religião. Destas, 60% tinham entre 18 e 29 anos quando o fizeram. Dados relevantes também são trazidos por levantamento do IBOPE demandado pela organização Católicas pelo Direito de Decidir: quase 70% da população é favorável ao direito ao aborto quando a mulher corre risco de vida ou quando o feto não sobreviverá após o parto; 52% apoia o direito de escolha quando a gravidez decorre de estupro; 96% entende que não é papel do governo prender as mulheres que abortaram; e que 61% afirma que essa decisão cabe à mulher. Em outras palavras, a população brasileira apresenta uma sensibilidade para que a atual legislação punitiva sofra revisões e sabe que as mulheres que abortam não diferem daquelas que não abortam: são mulheres comuns, têm religião, já tem filhos e, muitas vezes, são nossas colegas de trabalho, de militância, nossas amigas, irmãs, vizinhas, mães, filhas.
Se a prática alarmante de abortos, estimada em 1 milhão por ano, é uma realidade concreta que precisa ser enfrentada, o caminho não é o da criminalização. Esta não só empurra as mulheres para os riscos da clandestinidade e não previne abortos, como contribui para a ampliação da segregação social, já que gênero e raça estruturam a pobreza e a exclusão no Brasil: mulheres pobres e negras são centralmente as afetadas pela criminalização do aborto, por estarem submetidas à falta de acesso à saúde, educação, moradia e, ainda, ao risco de serem presas, ficarem inférteis ou morrerem por abortos inseguros.
Há alternativas para enfrentar a questão que não criminalizar as mulheres. A insígnia do movimeto feminista “Educação sexual para prevenir, contraceptivos para não engravidar, aborto seguro para não morrer” é sábia ao expressar que um conjunto de medidas pode ser tomado para encarar a realidade do aborto no país na perspectiva da saúde pública e da autonomia das mulheres, ou seja, respeitando seus direitos reprodutivos, sua dignidade. Este é o caminho que perseguimos e que um Estado laico, que não impede o acesso a políticas públicas por razões de grupos religiosos particulares, deveria garantir. A legalização do aborto se coloca como uma necessidade social para o conjunto das mulheres brasileiras: para que a mortalidade materna no Brasil, que tem como 4ª causa principal os abortos inseguros, possa ser extinta; para que não reforcemos a criminalização da população pobre e negra do país; para que o número de abortos diminua progressivamente e que esta prática seja cada vez menos necessária; para que a maternidade possa ser uma escolha das mulheres, e não uma imposição.
Laryssa Praciano, Maria Julia Montero e Thaís Lapa são militantes da Marcha Mundial das Mulheres e da Consulta Popular (Organizações que integram a Frente Contra a Criminalização das Mulheres e pela Legalização do Aborto).
Acesse o PDF: Somos todas clandestinas e lutamos para não mais sermos (Brasil de Fato, 24/09/2013)