Essa é a primeira das três fases de testes em seres humanos que medicamentos e vacinas têm de cumprir antes de serem liberados para comercialização e uso amplo
(Meio Ambiente Rio, 22/09/2016 – Acesse no site de origem)
Umas poucas dezenas de pessoas nos Estados Unidos e no Canadá receberam as primeiras doses de duas formulações candidatas a vacina contra o vírus zika nas últimas semanas. Essa é a primeira vez que potenciais vacinas contra o zika são testadas em seres humanos. Ambas as formulações são o que os pesquisadores chamam de vacina de DNA e apresentam composição semelhante: elas contêm cópias sintéticas de um trecho do material genético do vírus que codifica duas proteínas que o recobrem externamente, a proteína pré-membrana (prM) e a proteína do envelope (E), a partir das quais as células de defesa do organismo identificam o invasor.
Essa é a primeira das três fases de testes em seres humanos que medicamentos e vacinas têm de cumprir antes de serem liberados para comercialização e uso amplo na população. Na etapa atual, as duas formulações estão sendo administradas a voluntários saudáveis com o objetivo principal de verificar se são realmente seguras e não causam reações indesejáveis graves. Uma delas foi desenvolvida por pesquisadores do Centro de Pesquisas em Vacinas dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos Estados Unidos; a outra por um consórcio formado pelas empresas GeneOne Life Sciences, sul-coreana, e Inovio Pharmaceuticals, norte-americana.
Pouco se sabe sobre a vacina da GeneOne e da Inovio. Por ora identificada pela sigla GLS-5700, ela está sendo testada nos Estados Unidos e no Canadá, mas até o momento não foram divulgados os resultados dos experimentos com animais. A formulação dos NIH, a VRC-ZKADNA085-00-VP, que está sendo aplicada apenas nos Estados Unidos, mostrou-se eficaz em experimentos com roedores e macacos. Dados obtidos em julho e apresentados na edição de 22 de setembro da revista Science mostram que 94% dos macacos que receberam duas doses da vacina dos NIH ficaram protegidos da infecção por zika.
Nos experimentos, os grupos coordenados pelo médico Theodore Pierson e pelo virologista Barney Graham administraram em camundongos e macacos rhesus duas versões da vacina dos NIH, produzida usando os genes de uma variedade do zika que circulou na Polinésia Francesa. Em uma das versões, os pesquisadores acrescentaram aos genes do zika um pequeno trecho do material genético do vírus da encefalite japonesa. Esse vírus, assim como o zika e o da febre amarela, pertence à família Flaviviridae. Sabidamente a parte do material genético do vírus da encefalite japonesa adicionada à vacina aumenta a liberação de partículas virais no organismo, o que, em princípio, pode levar a uma resposta mais robusta do sistema de defesa.
Uma única dose de cada formulação dos NIH – cada animal recebia apenas uma das versões da vacina – foi suficiente para gerar anticorpos protetores contra o zika nos roedores. Nos macacos, as formulações se revelaram protetoras quando aplicadas em dois esquemas terapêuticos: duas doses de 1 miligrama (mg), uma inicial seguida de outra de reforço, administrada um mês mais tarde, ou duas doses de 4 mg. Em ambos os casos, os pesquisadores começaram a detectar a produção de anticorpos contra o zika duas semanas após a primeira injeção. Macacos vacinados com uma única dose de 1 mg da vacina apresentaram cerca de 10% da quantidade de anticorpos produzida pelos animais vacinados com duas doses.
Dos 18 macacos que receberam duas doses de 1 mg ou duas de 4 mg, 17 se tornaram completamente imunes ao zika. Em um experimento de desafio, em que os pesquisadores injetaram cópias de uma variedade do vírus em circulação em Porto Rico, nenhum desses 17 animais adoeceu nem apresentou níveis detectáveis de zika no sangue. Segundo o artigo da Science, mesmo o macaco que não foi totalmente protegido apresentou baixa concentração de vírus no organismo. Nos animais que haviam recebido apenas uma dose de vacina, o zika passou a se multiplicar a partir do quarto dia após a infecção.
“Verificamos que há uma concentração mínima de anticorpos necessária para conferir proteção”, conta a pesquisadora Leda dos Reis Castilho, a única brasileira a participar do estudo. Formada em engenharia química, Leda é professora do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia (Coppe), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ela coordena o Laboratório de Engenharia de Cultivos Celulares, onde vinha desenvolvendo uma vacina contra a febre amarela antes de a epidemia de zika eclodir. Leda atualmente passa uma temporada de um ano, financiada com seu salário da UFRJ, como pesquisadora-visitante no laboratório de Graham nos NIH para atuar no desenvolvimento de vacinas e anticorpos contra o zika.
“Com base nesses resultados com animais, obtidos em julho, os NIH conseguiram aprovação para iniciar os ensaios clínicos em seres humanos”, conta Leda. Desde o início de agosto, as equipes dos NIH já aplicaram a primeira dose da vacina de DNA em 55 pessoas com idade entre 18 anos e 35 anos. Nessa primeira fase de testes em seres humanos, os pesquisadores planejam aplicar de duas a três doses do imunizante em 80 indivíduos saudáveis.
Tanto a vacina dos NIH como a do consórcio GeneOne-Inovio guardam pequenas diferenças em relação a outra vacina de DNA contra o zika, desenvolvida pela equipe de Dan Barouch, diretor do Centro de Virologia e Pesquisa em Vacinas (CVVR), da Escola Médica Harvard, nos Estados Unidos. O grupo de Barouch, do qual participa o imunologista brasileiro Rafael Larocca, foi o primeiro a comprovar que uma vacina de DNA era capaz de proteger tanto roedores como macacos da infecção por zika. Apesar dos resultados promissores, semanas atrás outro tipo de vacina, produzida pelo Instituto de Pesquisa Walter Reed, do Exército norte-americano, a partir de cópias inativadas do vírus, parecia ter mais chance de progredir mais rapidamente. Boa parte das vacinas administradas aos seres humanos é feita com vírus inativado, e até o momento não há vacina de DNA aprovada para ser empregada como imunizante humano.
“Estamos apostando que a vacina de DNA dos NIH será muito segura e de rápido desenvolvimento”, afirma Leda. Atualmente, os pesquisadores já planejam a segunda fase de testes clínicos, prevista para começar em janeiro de 2017 e ser realizada em vários países, entre eles, o Brasil. Se tudo correr como esperado, em alguns anos essa vacina poderia ser usada pela população, por exemplo, na imunização de mulheres em idade reprodutiva. Em São Paulo, o Instituto Butantan, um dos principais centros produtores de soros e vacinas no Brasil, estuda a possibilidade de produzir a vacina de DNA dos NIH. “Visitei o grupo dos NIH tempos atrás e essa é uma vacina que poderá ser produzida no Butantan em um primeiro momento”, afirma o biólogo Paulo Lee Ho, diretor da Divisão de Desenvolvimento e Inovação Industrial do Butantan.
Em uma entrevista à revista de divulgação científica The Scientist, o médico Nelson Michael, coordenador da equipe do Instituto de Pesquisa Walter Reed que trabalha com a vacina com vírus inativado, contou que um imunizante de DNA pode ser a solução para o curto prazo, enquanto não se chega a uma vacina com vírus inativado, que pode ser facilmente produzida em grandes quantidades e a um custo baixo. Os testes de eficácia da vacina do Walter Reed ainda devem levar um ano e meio para começar.
“Ainda não está claro qual das possibilidades atuais é a mais eficaz, se as estratégias mais sofisticadas são realmente necessárias e se essas vacinas chegarão a um preço acessível aos lugares em que mais são necessárias”, escreveu o biólogo Dirk Dittmer, da Universidade da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, em um comentário que acompanhou o artigo da revista Science. “Seria prudente determinar quais dos atuais candidatos a vacina contra o zika têm a melhor relação custo-benefício antes de se direcionar vastos recursos de saúde pública para a produção de vacinas e a realização de testes clínicos em grande escala”, recomendou.
Na UFRJ, o laboratório de Leda está desenvolvendo partículas tridimensionais que mimetizam o vírus zika, as chamadas partículas pseudovirais, que podem ser usadas para produzir uma vacina. Para ela, o importante é ter várias possíveis vacinas em desenvolvimento. “Assim”, afirma, “é maior a probabilidade de que ao menos uma esteja disponível o quanto antes para a população”.