Nalu Faria fala sobre encontro que reúne mulheres de 48 países em SP e debate direitos e feminismo

26 de agosto, 2013

(Luciana Araújo/Agência Patrícia Galvão) Teve início neste domingo (25) com a chegada das delegações e a exposição “Feminismo em Marcha” o 9º Encontro Internacional da Marcha Mundial de Mulheres. Pela primeira vez a atividade é realizada no Brasil, onde desde 2006 funciona a coordenação executiva da Marcha.

A abertura oficial acontece hoje às 17h30, no Memorial da América Latina, com a presença da ministra Eleonora Menicucci, da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República.

No próximo dia 31, as feministas de mais de 48 países encerrarão o evento com uma caminhada do vão livre do Masp até a Praça da República. O Encontro Internacional reunirá 1600 mulheres, e a manifestação de encerramento deve reunir 10 mil pessoas.

A Marcha Mundial das Mulheres nasceu no ano 2000 em torno a uma campanha feminista contra a pobreza e a violência. O movimento se inspira em uma manifestação ocorrida em 1995, em Quebec, no Canadá, quando 850 mulheres marcharam 200 quilômetros pedindo simbolicamente “pão e rosas”.
Os principais objetivos da MMM é construir de uma perspectiva feminista o direito à auto-determinação das mulheres e a igualdade como bases de uma nova sociedade.

nalu fariaPara falar sobre a agenda e desafios que as organizadoras pretendem discutir no evento, a Agência Patrícia Galvão entrevistou Nalu Faria (psicóloga, coordenadora geral da Sempreviva Organização Feminista (SOF) e integrante da Secretaria Nacional da Marcha Mundial das Mulheres). Confira a programação aqui

“As ações específicas como, por exemplo, no enfrentamento da violência contra as mulheres, têm que ser parte de um processo mais geral de mudanças. Por mais que a gente precise atuar no sintoma e nos efeitos, acolher as mulheres que sofrem, punir os homens violentos e assassinos, isso não basta. Temos que criar condições de erradicar as bases da violência, não só sociais, mas as econômicas e culturais também”.

Nalu Faria – secretária executiva da
Marcha Mundial de Mulheres
(11) 99297.6012 / 3819.3876 – [email protected] 

 

ENTREVISTA

É a primeira vez que o encontro mundial acontece no Brasil. Qual o significado desse Encontro Internacional para o feminismo e as mulheres brasileiras?
Nalu Faria – Embora seja a primeira vez que o encontro ocorre no Brasil aqui, a Marcha já teve em vários momentos ações que envolveram mulheres de vários países, em particular durante os Fóruns Sociais Mundiais e na abertura da nossa Ação Mundial de 2005, quando fizemos a Marcha de Relevo e a Carta Mundial das Mulheres à Humanidade que viajou diversos países e cujo lançamento foi no Brasil.

Em 2006 o Brasil passou a ocupar a secretaria executiva internacional da Marcha, e este mandato acaba neste ano. Então, a realização do encontro aqui no país tem em particular o significado de poder compartilhar de forma mais concreta e por um tempo mais longo com as mulheres da Marcha do mundo inteiro a nossa experiência de luta feminista, por isso inclusive modificamos o formato do encontro, que em geral são menores e mais curtos.

Vamos fazer o encontro de delegadas, observadoras e convidadas, que reunirá em torno de 200 mulheres, e em paralelo uma reunião de brasileiras com convidadas latino-americanas e europeias, para que as brasileiras se apropriem mais do que é a Marcha em nível internacional. Então teremos dois encontros que se juntam em alguns momentos.

Ao mesmo tempo, o objetivo também é de ter um posicionamento forte sobre o feminismo para a sociedade neste momento. Com as características da Marcha, que se organiza muito a partir de mulheres da base em vários países da Ásia, África e da América Latina, com a participação muito marcante de mulheres camponesas, indígenas, populares, negras, no nosso país quilombolas, e ao mesmo tempo muitas jovens.

A pauta do Encontro é extensa. Começamos nossa ação com a consigna contra a pobreza e a violência. Depois organizamos o que a gente chama de quatro campos de ação: trabalho e a autonomia econômica para as mulheres, a vida sem violência, bens comuns e serviços públicos, e paz e desmilitarização.

E como trabalhamos todos esses temas em uma perspectiva feminista, antissistêmica, anticapitalista, antirracista, antipatriarcal e anti-lesbofóbica, estamos sempre comuma agenda que quer ter um olhar para a mudança global da sociedade. Ou seja, das relações sociais e do modelo em que a gente vive. Nesse sentido, o encontro contribui para esse posicionamento perante a sociedade como um todo e os meios de comunicação, o que nos ajuda no debate com a população.

Entre as pautas prioritárias do encontro estão a erradicação da pobreza e da violência contra a mulher. Que agenda, propostas e reivindicações, vocês pretendem pautar junto à sociedade após o encontro?
A Marcha tem uma discussão antiga, sobre violência como parte do sistema de dominação, que consideramos pautar perante a sociedade e governos. O que nos coloca o desafio de que as ações específicas como, por exemplo, no enfrentamento da violência contra as mulheres, têm que ser parte de um processo mais geral de mudanças. Ou seja, por mais que a gente precise atuar no sintoma e nos efeitos, acolher as mulheres que sofrem, punir os homens violentos e assassinos, isso não basta. A gente tem que criar condições de erradicar as bases da violência, não só sociais, mas as econômicas e culturais também. Todas essas questões têm que estar conectadas a um processo de fortalecimento da autonomia das mulheres, não só econômica, mas também cultura, do que significa ser mulher, de poder pensar a vida como sujeitos, desvinculadas da ideia de fragilidade feminina.

Por exemplo, quando na Marcha atuamos com o tema da paz e desmilitarização, não estamos querendo falar só dos territórios em conflito. Estamos falando da desmilitarização no cotidiano da nossa sociedade, que cada vez mais se militariza através das políticas, serviços de segurança privada, e cria uma cultura de controle sobre as vidas das pessoas.

E sabemos, temos dados, análises, que confirmam que quando a militarização da sociedade aumenta, cresce também a violência contra as mulheres. Isso está conectado a uma linguagem, uma cultura, uma representação, ao reforço da ideia de fragilidade das mulheres e do controle sobre elas, assim como em relação aos negros e jovens, e todos os que sofrem uma opressão que nos torna mais vulneráveis na sociedade.

Então, o tema da desmilitarização é um tema para todas as sociedades e países.

Outro elemento que levantamos com muita força é o que significa a mercantilização do corpo e da vida das mulheres, que passa pela forma como o trabalho das mulheres é explorado, como o tempo e o trabalho são utilizados, como recursos inesgotáveis.

E, ao mesmo tempo, de uma sociedade que através de um padrão de beleza e de uma exigência de um corpo perfeito controla o tempo todo o corpo das mulheres afirmando que nosso corpo tem que ser modificado, e que nos deixa vulneráveis a mais violência. Então, o papel da Marcha é lidar com a questão da violência nesse âmbito mais geral.

O Brasil vive um contexto de ofensivas às liberdades individuais e direitos sexuais e reprodutivos – ações contrárias ao direito ao aborto previsto por Lei, o Estatuto do Nascituro, um forte discurso anti-homossexual em contraposição a um “modelo” de família heterossexual e chefiada pelos homens. Como o encontro pode ajudar no enfrentamento a essa realidade?
Primeiramente, o que faz a gente mudar nossa realidade é mostrarmos nossa força como organização, como mulheres que estão se organizando e vão resistir sempre a esses ataques. O fato de ser um movimento internacional, com mulheres de países e regiões tão diferentes, com realidades econômicas, sociais, culturais tão distintas, que conseguem construir uma pauta conjunta e estão conectadas a ações internacionais, ajuda a demonstrar essa força.

De outro lado, vamos envolver companheiras latino-americanas nas mesas de debates sobre esses temas na parte do encontro que discutirá o Brasil, justamente com essa abordagem de buscar construir vínculos, aprender com as experiências umas das outras. Então, no dia 28 vamos discutir nossa trajetória pelas correntes teóricas do feminismo.

No dia 29, vamos ter debates temáticos (aborto, comunicação, cultura, soberania alimentar, trabalho). E no dia 30 debateremos nossas práticas, quando queremos trabalhar muito como temos atuado, qual o significado de cada forma de atuação nossa, como a resistência das companheiras da Chapada do Apodi, as ações dirigidas para orientação das mulheres no uso do misoprostol.

E, a partir daí, a gente tem muita vontade de buscar estratégias de ação comum, em nível latino-americano, não só da Marcha, mas também com outros setores, em relação ao direito ao aborto, um dos pilares da nossa opressão. Esse tema está sob ataque também na Europa, mas na América Latina, à exceção do Uruguai, temos uma situação muito comum de pressões no sentido de fazer retroceder direitos e nos forçar a uma agenda de resistência, para impedir retrocessos. Os opositores dos direitos das mulheres buscam nos manter ocupadas com a agenda deles, e não com a nossa. Então, temos que criar uma estratégia para fugir dessa armadilha.

A gente teria que conseguir articular na América Latina uma pressão coletiva – apesar das dificuldades da agenda extensa, dos poucos recursos, e também porque, contraditoriamente, de certa forma caiu um pouco a centralidade da articulação regional. Temos que conseguir no movimento de mulheres ter um processo de articulação e uma capacidade de desenvolver ações comuns e articuladas para ter capacidade de pressão sobre os governos e esses espaços de debate multilateral. E, obviamente, em conjunto com a agenda do direito ao aborto temos também, a da liberdade sexual, o direito de decidir em relação à sexualidade, a questão dos direitos das lésbicas, as políticas públicas, a questão das jovens, das mulheres negras e do campo.

Em nível internacional, por exemplo, os temas do aborto e da sexualidade estão inseridos no campo de ação pelo direito de viver sem violência, que é o direito de viver livre da coerção e com liberdade de decisão.

Como vocês trabalham para definir estratégias em relação à discriminação e a violência considerando a diversidade cultural dos país em que a MMM atua no mundo?
É uma intervenção vinculada segundo as condições de cada país. Tem lugares onde os governos são absolutamente autoritários ou não há nem muito a ideia de um Estado. Então, é muito diferente a forma de atuação e de como as mulheres conseguem demandar direitos do Estado. Em muitos lugares, elas estão resistindo a governos autoritários, ditatoriais, etc. Esse é o nosso grande desafio, inclusive para poder problematizar com as agências multilaterais, porque também quando se fragmenta um tema ou ação a gente às vezes acaba pensando medidas que não dão conta da complexidade das questões. No tema da violência, muito mais.

Há temas que ainda são absolutamente tabus. Por exemplo, o estupro e o abuso sexual de meninas em família – pelo tio, o irmão, o pai. Sempre que a gente toca no abuso sexual cria-se um grau de estranhamento como se não estivéssemos falando de algo que é do cotidiano das pessoas. Isso é uma demonstração de como ainda não se mexe no núcleo da estruturação da violência. Se as agências multilaterais, inclusive a ONU Mulheres, tivessem esse olhar mais amplo avançaríamos muito mais no debate. Mas o problema é que quando nossas questões entram em debates no sistema ONU tudo vira uma planilha de planejamento, perdendo a dimensão das relações e do conflito. Essa é uma contradição que temos até para lidar com o debate das políticas desses organismos.

Ao mesmo tempo, a sociedade brasileira parece avançar na percepção da importância da maior participação das mulheres na política. Pesquisa realizada em abril pelo Ibope/Instituto Patrícia Galvão apontou que 80% da população considera importante a paridade nos legislativos e 74% avaliam que só há democracia de fato com mais mulheres nos espaços decisórios. Gostaria que você comentasse esses dados.
Claro que queremos paridade e mais mulheres participando, mas há duas questões anteriores a debater. Uma delas é em que sistema político, porque no atual sistema vai significar incorporar apenas algumas mulheres, manter e aprofundar uma hierarquização entre as mulheres porque não são todas que vão entrar nas listas partidárias. Então, ou a gente avança numa real democratização dos estados e num outro sistema político de poder, que tenha mais relação com o poder popular, com os espaços de democracia direta e assim por diante, ou vamos criar uma ilusão de que chegamos à igualdade.

O patriarcado continua existindo. As mulheres continuam sendo desqualificadas, controladas, trabalhando mais.

O segundo elemento, além da mudança do sistema de poder, é como mudar a relação da produção e da reprodução, e sua relação com o trabalho doméstico. Porque enquanto as mulheres continuarem sendo as quase únicas responsáveis pelo trabalho de cuidados e do trabalho doméstico, não estarão dadas as condições de igualdade para as mulheres.

O que tem acontecido hoje é – no pouco espaço de participação que as mulheres têm – uma brutal sobrecarga. As mulheres que podem por sua condição financeira, terceirizam ao máximo os serviços domésticos para outras mulheres. Nessa lógica a maioria das mulheres continuarão sem condições de participar.

E sabe-se que essa é uma realidade, especialmente nos países latino-americanos, que é reforçada pelo racismo – seja em relação às negras ou às indígenas, embora, claro, exista uma parcela significativa de mulheres brancas pobres também. Na Europa, esse debate passa pelo combate à imigração, e assim por diante.

Mesmo entre as mulheres pobres, algumas estão mais sobrecarregadas que outras como, por exemplo as avós que criam netos e até bisnetos. Em relação às mulheres negras há uma histórica sobrecarga. Uma mulher negra que consegue ter um salário estável, mesmo que como empregada doméstica, tem que redistribuir aquele salário entre várias pessoas da família.

Então, temos que questionar a forma como a sociedade se organiza, questionar a atual forma individualizada de famílias mononucleares, que aparece como modelo. Enfim, mudar o padrão de responsabilização das mulheres. E não estou falando só de creches, restaurantes coletivos, mas de como a sociedade se organiza, de como a sociedade atual sobrecarrega mais individualmente as mulheres.

Então, temos que fazer uma discussão mais ampla sobre a sociedade. Por isso é sempre complexo fazer essa discussão da participação política das mulheres. A paridade é uma ferramenta, mas para dar certo tem que conseguir dialogar e estar inserida em outras mudanças mais gerais.

 

Serviço
9º Encontro Internacional da Marcha Mundial de Mulheres
25 a 31 de agosto, no Memorial da América Latina

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