O tempo da ciência não poderá ser o tempo da garantia de direitos, por Luciana Brito

12 de setembro, 2016

O cuidado das crianças ainda é um dever das mulheres, são elas que deverão ser protegidas pelo Estado para o cuidado de seus bebês afetados pela epidemia

(BrasilPost, 09/09/201 – Acesse no site de origem)

Pouco se fala, mas é sempre bom lembrar: há uma epidemia de zika em curso no Brasil. E o protagonista não é o mosquito, mas mulheres e crianças. O procurador-geral da República Rodrigo Janot emitiu parecer na última sexta-feira dia 06 de setembro e defendeu a proteção de direitos constitucionais de mulheres e crianças afetadas pela epidemia, e reconheceu que a maioria são “mulheres pobres e nordestinas, vítimas da negligência estatal”. Há várias demandas da vida que devem ser protegidas – serviços de saúde adequados às necessidades das crianças afetadas pela síndrome do zika congênito, acesso universal ao Benefício de Prestação Continuada (BPC), políticas efetivas de planejamento familiar e acesso à informação. Apesar das demandas refletirem direitos básicos, em tempos de epidemia estes direitos vem sendo diariamente violados.

Talvez o esquecimento de que há em curso uma Emergência de Saúde Pública possa ser explicado pela estratificação geográfica e econômica vivida no Brasil. Em tempos de zika milhares de mulheres grávidas ou em idade reprodutiva ainda vivem a angústia de sentir na pele vermelhidões, coceiras e febre passageiras. Mas a surpresa do zika não foi a “dengue fraca” ou a “alergia medonha” de gente acostumada a sentir sintomas de virose dos trópicos, mas sim o nascimento de crianças de cabeças miúdas – o primeiro sinal observado das desordens neurológicas e malformações fetais associadas ao vírus zika.

Milhares de mulheres em idade reprodutiva, grávidas ou cuidadoras de seus bebês vivem a angústia das perguntas ainda sem resposta. Certamente a ciência ainda levará tempo para responder todas as perguntas, mas o tempo da ciência não poderá ser o tempo da garantia de direitos. As respostas a uma epidemia pedem urgência, e infelizmente o tema parece ter perdido espaço na agenda. Nos últimos meses falou-se muito sobre crise econômica e política, Operação Lava-Jato, Jogos Olímpicos e afastamento da presidenta. Estes foram temas discutidos intensamente em mídias sociais e meios de comunicação. As mulheres do sertão nordestino e seus bebês ficaram esquecidos ou, ainda mais perverso, foram transformadas em lendas durante as olimpíadas. É verdade que as sertanejas não andam pelas calçadas de Ipanema, Copacabana ou visitam a Vila Olímpica, mas o Brasil não está resumido à zona sul do Rio de Janeiro ou o centro-sul do País.

Se a história de mulheres e famílias afetadas pelo zika em regiões remotas do Brasil é conhecida por poucos, Debora Diniz conta o que ouviu, viveu e observou em tempos de epidemia. O livro Zika: do sertão nordestino à ameaça global, lançado pela editora Civilização Brasileira nos apresenta com sensibilidade e delicadeza a história da epidemia do vírus zika no Brasil. Diniz se utiliza de múltiplas fontes para dar o seu testemunho da epidemia – aquilo que na ciência chamamos de triangulação. Para escrever o livro ouviu histórias, fez entrevistas com diferentes atores, participou de reuniões e eventos científicos, revisou a literatura científica sobre o tema e monitorou mais de 5 mil veículos de comunicação nacionais e internacionais.

Debora Diniz ouviu homens e mulheres do sertão – são médicos e médicas da assistência, os primeiros a ouvir as queixas da multidão de nordestinos anônimos; cientistas de bancada mas de regiões tradicionalmente pouco reconhecidas que receberam as primeiras amostras de sangue; homens e mulheres que viveram no corpo as consequências da epidemia e resistem apesar do descaso do poder público.

Debora escreveu no tempo da epidemia, faz um manifesto e denunciou o estado de desamparo vivido por mulheres comuns anônimas ou ignoradas pela vigilância epidemiológica. Ela nos lembra que enfrentar o problema do zika é muito mais que notificar números de casos confirmados ou descartados. Combater o mosquito deve ser parte da política pública de saúde, no entanto, mais importante que combater um mosquito que convive há décadas dentro de nossas casas, Debora nos convida a falar sobre direitos de mulheres nos tempos da epidemia. O cuidado das crianças ainda é um dever das mulheres, são elas que deverão ser protegidas pelo Estado para o cuidado de seus bebês afetados pela epidemia. Mas Diniz também não nos deixa esquecer que falar de zika é também é falar sobre direitos sexuais e reprodutivos. Garantir o métodos contraceptivos e aborto seguro é também cuidar da saúde pública.

Luciana Brito é doutora em saúde pública pela Universidade de Brasília e pesquisadora da Anis Instituto de Bioética

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