(CLAM, 16/10/2015) Nos últimos 30 anos, o aborto tem sido objeto de um número significativo de estudos no campo da saúde reprodutiva, reconhecendo-se sua importância como problema de saúde pública no Brasil. A maioria das pesquisas está concentrada em hospitais públicos, em estimativas a partir de internações hospitalares de mulheres admitidas para tratamento do aborto incompleto, restringindo-se aos abortos que apresentaram complicações, aponta a pesquisadora Greice Menezes em artigo publicado em 2009 nos Cadernos de Saúde Pública.
Poucos são ainda os estudos de base populacional sobre o tema, e a maioria das investigações, oriundas de outros campos de estudo, foram realizadas na Região Sudeste, sendo raras nas outras regiões. Daí o mérito de recente pesquisa lançada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que pela primeira vez realizou uma estimativa sobre o aborto no Brasil, por região do país. De acordo com o levantamento, mais de 8,7 milhões de brasileiras com idade entre 18 e 49 anos já fizeram ao menos um aborto na vida. Destes, 1,1 milhão de abortos foram provocados.
No entanto, embora importantes, os resultados somente mostram a ponta do iceberg e devem ser lidos com cautela, avaliam pesquisadoras no tema.
“É um avanço termos esta informação em uma pesquisa do Instituto Oficial de Estatísticas, mas ainda há problemas. Em primeiro lugar, foram selecionadas somente mulheres acima de 18 anos de idade e sabemos que a incidência de aborto entre adolescentes é alta”, observa a demógrafa Suzana Cavenaghi, da Escola Nacional de Ciências Estatísticas (ENCE) do IBGE.
“Quando se trata de aborto na adolescência, os dados são invisíveis”, ressalta a antropóloga Maria Luiza Heilborn (IMS/UERJ), coordenadora da pesquisa GRAVAD – Gravidez na Adolescência: Estudo Multicêntrico sobre Jovens, Sexualidade e Reprodução no Brasil, realizada com uma amostra representativa de 4.634 moças e rapazes de Salvador (Bahia), Rio de Janeiro e Porto Alegre. A pesquisa GRAVAD mostra dados sociologicamente importantes: 7,5% das moças entrevistadas na pesquisa e 12,4% dos rapazes, ao falarem das parceiras, relataram a experiência de aborto provocado na adolescência.
Segundo as pesquisadoras, outro ponto da pesquisa do IBGE que deve ser visto com cuidado é que o número de abortos ditos espontâneos mostrado pelo levantamento é muito maior que o dito provocado. Por ser crime punível por lei, o IBGE estima que haja um grande número de casos não notificados em sua pesquisa.
“Este problema ocorre sempre que se faz a pergunta direta, ainda mais de um ato considerado crime no país. Adiciona-se a isto o fato da maioria dos entrevistadores serem homens e não conhecerem o efeito disto sobre a resposta dada pelas mulheres”, afirma Suzana Cavenaghi.
Maria Luiza Heilborn concorda que o efeito de gênero pode atravessar as respostas das mulheres – o que não foi medido na pesquisa do IBGE –, e chama a atenção para o uso impróprio de uma linguagem que não diferencia os abortos espontâneos dos provocados.
“A pesquisa dá conta de quase 9 milhões de abortos, mas os provocados são 1 milhão. A maior parte das depoentes falam em abortos espontâneos. Assim, estas não fizeram aborto”, observa a antropóloga, que, além da GRAVAD, também coordenou recentemente a pesquisa Heterossexualidades: contracepção e aborto, que investigou as articulações entre o exercício da heterossexualidade e as questões relacionadas à contracepção e ao aborto.
O aborto espontâneo tem origem diversa, ocorre muitas vezes no início da gestação, parte de um mecanismo de seleção natural ou quando a gestação é inviável; em outros casos, pode estar relacionado a quadros infecciosos, alterações uterinas etc.
Ana Cristina González, médica e pesquisadora colombiana em políticas de saúde pública, afirma:
“Para a saúde pública, a magnitude de abortos espontâneos não é importante, pois eles acontecem por problemas na gestação e ocorrem em 15% a 30% das gestações. Nada se pode fazer a respeito e, deste modo, não faz sentido compará-los aos abortos provocados, que demandam intervenções médicas, provocam gastos hospitalares e, sobretudo, risco de vida ou de morbidade para as mulheres, dadas as condições em que foram feitos”.
No mapa do IBGE, a diferença entre a ocorrência do aborto nas regiões Nordeste e Sudeste é de menos de 1% – portanto, não significativa. A diferença é maior entre Sul e Sudeste. Esses resultados convergem com os de outras pesquisas, como a GRAVAD, que evidenciou maior magnitude do aborto entre jovens baianas, e menor entre as gaúchas, com as cariocas em posição intermediária.
De acordo com a pesquisa do IBGE, entre as mulheres pretas, o índice de aborto provocado (3,5% das mulheres) é o dobro daquele verificado entre as brancas (1,7% das mulheres).
“As diferenças por cor e status econômico apontam para o problema conhecido de falha na provisão de métodos contraceptivos adequados entre a população mais pobre”, ressalta Suzana Cavenaghi (ENCE/IBGE).
No que diz respeito aos métodos contraceptivos, o maior entrave no país é principalmente a logística de distribuição. Além do tamanho continental do país e das diferenças regionais, as relações entre governo federal, estado e municípios na provisão de métodos contraceptivos mudam regularmente, sem se ter chegado ainda a uma fórmula adequada. Atualmente, o governo Federal se responsabiliza por 100% dos gastos com contraceptivos (sem repasses a estados e municípios), portanto responsável pela compra de todos os métodos e da sua distribuição até as secretarias municipais de Saúde.
Em 2005 o Governo brasileiro lançou a Política Nacional de Direitos Sexuais e Reprodutivos, onde se comprometia a comprar e distribuir 100% dos métodos. A primeira compra somente conseguiu se concretizar em dezembro de 2007 e os métodos começaram a ser distribuídos no início de 2008. Os resultados da PNDS-2006 (Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Criança e da Mulher) com relação à provisão dos métodos contraceptivos refletem bem esta situação. Os métodos hormonais e camisinha são em sua grande maioria, mais de 70%, adquiridos nas farmácias da rede particular. A laqueadura é que tem a maior oferta feita pelo SUS. Em relação à vasectomia, apesar de ser ofertada pelo SUS, a rede particular ainda é responsável por sua maior provisão. Assim, as pessoas mais necessitadas continuam a ter que gastar com métodos contraceptivos adquiridos em farmácias e os métodos mais oferecidos pelo SUS são os cirúrgicos. Isto pode gerar novo desequilíbrio no leque de métodos utilizados. O mais preocupante é que o uso de métodos não permanentes adquiridos no mercado está mais sujeito a usos intermitentes e possíveis falhas. Como os dados da PNDS mostram, ao redor de 54% dos nascimentos ocorridos após janeiro de 2001, não foram planejados para aquele momento e 18% não foram sequer desejados.
“Ainda precisamos buscar formas mais adequadas de fornecer os meios adequados para que a população possa alcançar seus direitos reprodutivos, independente do nível de fecundidade. Assim, apesar de alguns acharem que já não temos ‘problemas’ com a auto-regulação da fecundidade, principalmente em uma situação de desejo por uma prole menor, o atendimento à contracepção adequada é um direito essencial, que deve estar nos programas e ações do governo de maneira contínua. Apesar das suas limitações, os resultados da pesquisa do IBGE mostram que o problema do aborto é bem maior do que muitos gostam de admitir. Ainda que fossem apenas um milhão os abortos provocados para mulheres de 18 a 49 anos de idade, imagine a quantidade de processos que isto implicaria. Ou seja, tapamos os olhos com peneira quando tentamos, por meio de lei, proibir que as mulheres ou os casais realizem o aborto de uma gravidez não planejada ou desejada”, conclui Suzana Cavenaghi.
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