“O aborto será descriminalizado este ano”

25 de junho, 2014

(El País, 25/06/2014) A entrevista foi realizada no Palácio de La Moneda depois do final da partida em que o Chile perdeu de 2-0 da Holanda. Michelle Bachelet se mostrou sorridente e disposta a ficar com o lado bom: “O Chile jogou bem”. E essa é a tônica também dos três meses em que está em seu segundo mandato de presidente: o otimismo. Apesar de que, mal chegou, se deparou com um terremoto no norte do país. Apesar de em abril ter enfrentado o maior incêndio na história de Valparaíso, com mais de 8.000 pessoas afetadas, e há duas semanas terem ocorrido inundações no sul, Bachelet diz sentir-se satisfeita, porque nada disso impediu que cumprisse mais de 90% das 56 medidas que se propôs a pôr em marcha nos 100 primeiros dias. E considera que está em condições de erradicar o grande mal do Chile, que é a desigualdade.

No momento, a Câmara dos Deputados aprovou a reforma tributária, indispensável para financiar parte da reforma educacional, o grande objetivo de seu Governo. Apesar das numerosas críticas colhidas na oposição, nos próximos meses a reforma será aprovada pelo Senado. Ela insiste que continua aberta ao diálogo e que pode aceitar sugestões. Mas diz que não renunciará à essência da reforma tributária: que pague mais quem tem mais. E, para antes do fim do ano, espera dar impulso à descriminalização do aborto no caso de risco de vida para a mãe, inviabilidade do feto e estupro.

Pergunta. Durante os anos em que a senhora esteve à frente da Secretaria da Mulher na ONU (2010-2014), como viu o Chile?

Resposta. Eu vi um país que tem tudo de bom: uma democracia estável, uma economia com crescimento estável, com muitos êxitos… Mas, por outro lado, os jovens estiveram cerca de oito meses na rua. E não eram só os jovens. Muita gente acompanhou esse processo, em um país que começa a dizer: “Não nos basta o que temos.” E isso foi o que me motivou a dizer: “ Se tomo a decisão de voltar, será para realizar mudanças profundas”.

P. A Bachelet do segundo mandato, é mais ou é menos de esquerda que a do primeiro?

R. Eu disse que não tinha voltado nem mais vermelha nem mais verde, mas talvez pondo muito mais no centro, mais do que as cores, os assuntos dos cidadãos. A desigualdade é nosso grande inimigo. E esse é meu norte fundamental.

P. Então, é uma Bachelet mais ou menos intrépida?

R. Consciente de que os desafios que o Chile requerem mudanças estruturais e disposta a levar adiante essas mudanças.

P. Como foram esses primeiros 100 dias?

R. Foram intensos. Quatro anos se tornam curtos e tínhamos que começar primeiro a atender os compromissos com os cidadãos. É preciso represtigiar a política. E a política pode ser represtigiada também quando se cumpre aquilo com que nos comprometemos. É superimportante recuperar a confiança das pessoas nas instituições democráticas. Parecem mais de três meses, para ser franca. No entanto, agora é a hora da implementação de muitas dessas coisas. Já definimos o que vamos fazer. Agora é preciso começar.

P. Seu Governo interrompeu o gigantesco projeto de eletricidade HidroAysén, na Patagônia chilena, que contemplava a construção de cinco represas. Isso foi comemorado pelos ecologistas e ambientalistas, que questionavam o projeto há seis meses. Mas há quem conteste dizendo que a consequência direta vai ser o aumento nas tarifas da energia elétrica, num país que já tem os preços de eletricidade mais caros da América Latina.

R. Estamos trabalhando a longo prazo e com muita força em energias renováveis não convencionais. Mas nosso compromisso é aumentar fortemente distintas fontes de energia: gás natural, eólica, geotérmica e solar, além da hídrica, claro.

P. Mas acredita que vai haver reflexo nas tarifas, que vão ficar mais caras?

R. Qualquer custo que possa haver não necessariamente vai estar relacionado com a HidroAysén. Porque há licitações que vão sendo feitas a cada determinado momento e que foram aumentando os preços, mas isso não tem nada a ver com a HidroAysén.

P. O jornal La Tercera publicou a carta de um leitor que dizia: “Não haverá paz em La Araucanía enquanto a história continuar sendo ignorada”. O leitor sugeria que o Governo compre terrenos e os devolva aos indígenas mapuches para reparar o que a senhora mesmo assume como uma dívida histórica que o Estado chileno tem para com os povos indígenas. Que ações o seu Governo contempla?

R. Queremos estabelecer um novo acordo com os povos indígenas, não só com o povo mapuche. Agora, eu quero dizer que desde o ano de 1990, pelo menos, o Estado chileno, em todos os Governos, comprou uma enorme quantidade de terras, transferiu às comunidades muita quantidade de terra. E, neste novo Governo, isso voltará a ser uma parte muito importante. Mas não é só uma questão de restituição de terra. Tem de haver também apoio e desenvolvimento produtivo. Isso implica capacitação e um montão de coisas. Estamos organizando uma agenda de trabalho.

P. Quando será aprovada a descriminalização do aborto?

R. No Chile essa discussão tem transcorrido no Parlamento [durante outros mandatos]. E há uma enorme quantidade de moções parlamentares na Câmara e no Senado. Estamos na etapa de revisar todas essas moções e olhar qual vamos apoiar, como vamos apoiar, de modo que possamos avançar na descriminalização.

P. Quando acredita que seja possível?

R. Acho que vai ser durante o segundo semestre. Provavelmente nos últimos meses do segundo semestre.

P. Antes do término do ano?

R. Sim. Analisaremos o procedimento legislativo, mas, sim, antes do fim do ano.

P. Apesar das numerosas diferenças internas que já surgiram em sua aliança de sete partidos, a Nova Maioria (integrada por democrata-cristãos e comunistas) acredita que a coalizão resistirá quatro anos unida?

R. Não tenho a menor dúvida. Todos queremos acabar com a desigualdade. E todos entendemos que a reforma educacional é a chave.

P. Por que é inegociável para o Chile a concessão da saída do mar para a Bolívia?

R. Temos um tratado de 1904, que fixou com clareza os limites entre Chile e Bolívia. E, portanto, para nós, esse tratado está em vigor. Cumprimos tudo o que o tratado estabelecia, que era que tivessem acesso ao mar efetivamente, não acesso soberano, mas acesso ao mar no uso dos portos. Não tenho agora de cabeça a cifra da quantidade de recursos que o Chile gasta para cumprir o tratado de 1904, mas é enorme. E continuaremos cumprindo a nossa parte, mas acreditamos que temos de respeitar o direito internacional.

P. Na Argentina se olha com certa admiração para a institucionalidade deste país. O processo de transição entre presidentes é considerado um modelo. E o que a senhora admira no país vizinho?

R. Primeiro, a educação grátis. Além do mais, a Argentina é um país de tremendo potencial, de riqueza. Tem grandes homens e mulheres, cientistas, literatos, esportistas… Tem um acesso a livros com preços muito adequados. Tem todo tipo de expressões culturais. Acho que muitas dessas coisas podemos aprender com a Argentina.

P. Qual a sua opinião sobre o novo rei da Espanha?

R. Ele me parece uma pessoa muito bem preparada, inteligente, muito agradável. De muito bom trato.

P. O processo de mudança está sendo mais difícil do que esperava?

R. Eu já esperava. Eu tinha consciência de que este Chile queria resultados já. E, portanto, que isso vai demandar muito mais de mim. O que importa, por fim, é que se fale a verdade. E se algo não vai dar, explicar de frente ao país. Observe: em todas as pesquisas a grande maioria das pessoas apoia que haja reformas. E, no entanto, uma porcentagem importante acredita que não vamos conseguir fazê-las. Mas, se voltei de Nova York, foi porque decidi que se eu tinha um capital político que havia ganhado em minha gestão anterior, era para usá-lo.

P. Já que menciona seu trabalho na Secretaria das Mulheres da ONU… A senhora sempre defendeu os Governos partidários, com metade de homens e mulheres. Por que, então, há menos mulheres em seu Gabinete?

R. Porque eu tinha dito que não iria repetir nenhum ministro anterior. Então, além do que eu decidi sobre os ministros, também chegam para mim listas de pessoas. E a maioria dos nomes de mulheres que chegava já tinha sido ministra. Foi muito mais difícil. E, no nosso país, a verdade é que os partidos políticos ainda têm de avançar muito mais na hora de promover suas mulheres.

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