O poder do Estado sobre os direitos reprodutivos no Brasil

29 de junho, 2018

Leis no país autorizam esterilização por ordem judicial ao mesmo tempo em que dificultam os procedimentos de esterilização voluntária e penalizam o aborto.

(DW, 29/06/2018 – acesse no site de origem)

Cansada dos efeitos colaterais dos anticoncepcionais que sempre tomou, Amelia Leão* foi ao seu ginecologista, um médico que atendia pelo plano de saúde em Curitiba, buscando a esterilização como alternativa para não ter filhos. “Quando ele falou que não faria por causa da lei, achei que estava inventando”, diz a advogada, que tem 31 anos. “Até pensei que ele poderia se recusar por questões pessoais. Mas quando vi que era verdade, senti muita raiva de ter nascido neste país”, conta.

Leia mais: Bancada religiosa reage a debate sobre aborto (O Globo, 01/07/2018)

No Brasil, a lei proíbe que homens e mulheres optem pela esterilização voluntária se não tiverem 25 anos completos ou ao menos dois filhos vivos. Também é necessário o consentimento do cônjuge. A norma foi promulgada como uma regulamentação do artigo 226, inciso 7º, da Constituição, que trata do planejamento familiar como um direito do cidadão e um dever do Estado. Na prática, mesmo mulheres com mais de 25 anos esbarram em dificuldades, pois muitos médicos se recusam a fazer a esterilização se elas não tiverem filhos.

A lei demonstra o papel paradoxal do Estado em relação aos direitos reprodutivos dos brasileiros. Ao mesmo tempo em que impõe uma série de restrições aos procedimentos de laqueadura e vasectomia voluntários e penaliza o aborto, faculta ao Poder Judiciário decidir sobre casos de esterilização forçada, como aconteceu com Janaína, mulher que foi esterilizada sem o seu consentimento, após uma decisão em que o juiz acatou o pedido do promotor sem ter ouvido a defesa. O caso aconteceu em Mococa, interior de São Paulo, e ganhou repercussão internacional.

O Estado e as mulheres pobres

Decisões como estas não são raras e quase sempre são tomadas em detrimento dos direitos das mulheres, observa a advogada e diretora jurídica da ONG Artemis e conselheira da Aliança por Saúde e pelos Direitos Sexuais e Reprodutivos da Organização das Nações Unidas, Ilka Teodoro.

“Nós falamos do controle de natalidade de uma mulher com muitos filhos, mas nunca se sugere que se controle um homem com muitos filhos que não pague pensão e não assuma os cuidados das crianças. A lei, muitas vezes, reproduz injustiças sociais para as mulheres”, diz a advogada.

Embora a Constituição assegure que homens e mulheres são iguais perante a lei, a vontade do Estado sobre os direitos reprodutivos costuma pesar mais sobre mulheres pobres e não brancas, ressalta Teodoro. “Negras, indígenas e ribeirinhas são as maiores vítimas do sistema que dificulta a esterilização voluntária e têm menos acesso aos métodos contraceptivos.”

Essas mulheres acabam pagando pela incapacidade do Estado de cumprir seu papel, critica. “O Estado deixa de oferecer os direitos básicos a que é obrigado, como saúde e educação, e depois penaliza quem não os teve, como as mulheres que optam pelo aborto ou são esterilizadas de maneira forçada por terem muitos filhos.”

Esterelização Social

Quando fazia sua residência médica na década de 80, o ginecologista e obstetra José Geraldo Romanello Bueno era instruído por seus professores na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em São Paulo, a oferecer a laqueadura para mulheres “muito humildes, com terra nos dedos e muitos, muitos filhos”.

“Nós chamávamos de esterilização social. Nunca fizemos nada a força. A gente oferecia imbuídos de compaixão, porque entendíamos que ninguém ali tinha condições de fazer planejamento familiar”, recorda ele, que também é advogado e professor de biodireito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. “Muitas vezes, uma mulher com 11 filhos nem fazia o pré-natal. Esta paciente não tinha orientação e conhecimento para tomar suas decisões.”

Para a professora de Direitos Humanos da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Taysa Matos, esta prática “travestida de caridade” reflete, na verdade, a falta de enfrentamento do problema em suas várias camadas sociais.

“É mais fácil a ‘esterilização’ que ‘salva’ do que a promoção e manutenção de políticas públicas de saúde e, principalmente, de educação”, diz. Ela comenta que essa interpretação é de que a atitude é benéfica para a pessoa que não tem como criar e sustentar outra e para toda sociedade que não terá que conviver com mais miseráveis e invisíveis.

“Entretanto, essa é a ótica do Estado e de uma sociedade cada vez mais individualista e desigual. E que consequentemente vê a punição, mesmo travestida de benefício, como solução para todos os males.”

Prática recorrente

Essa política não é recente. A professora de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), Flávia Birolli lembra que em 1992 foi instaurada uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito no Congresso para averiguar as denúncias de esterilização em massa de mulheres no período da ditadura, “quando a International Planned Parenthood Federation passou a atuar no país, alinhada às políticas dos Estados Unidos para redução da população no chamado Terceiro Mundo”. A lei do planejamento familiar é de 1996.

“É importante observar que, historicamente, o Estado brasileiro tem atuado na forma de repressão ou esquivando-se de seu papel em garantir a cidadania das mulheres no que diz respeito à autonomia reprodutiva. Isso tem relação direta com as hierarquias raciais, de gênero e de classe”, observa Birolli.

Paradoxo legal

As especialistas destacam como a lei no Brasil é direcionada contra a vontade dos indivíduos. “O mesmo Estado que autoriza esterilização forçada penaliza o aborto e dificulta os procedimentos de esterilização voluntária”, pontua a advogada Ana Lucia Keunecke, membra da Rede Feminista de Juristas (DeFEMde).

No Brasil,o aborto só é permitido quando há risco de morte para a gestante, quando a gravidez resulta de estupro ou quando o feto é anencéfalo. Nos demais casos, interromper a gravidez é considerado crime com punição de um a três anos de detenção.

Para Keunecke, a descriminalização do aborto tem amparo na lei internacional, que reconhece o direito de todas as mulheres de controlar todos os aspectos de sua saúde, em particular sua própria fertilidade.

“O Brasil é signatário de tratados internacionais como a Convenção de Pequim, que trata da autonomia da mulher nos seus direitos sexuais e reprodutivos. Estes tratados são posteriores ao Código Penal, que criminaliza o aborto. Juridicamente temos subsídios que assegurem a homens e mulheres a liberdade de seus direitos. Só não temos a efetivação”, diz Keunecke.

Ações em tramitação

Em agosto, a advogada da Rede Feminista de Juristas deve participar da audiência pública sobre uma ação que pede a descriminalização do aborto até a 12ª semana gestação. A chamada Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442 foi proposta pelo PSOL no Supremo Tribunal Federal (STF).

Em paralelo, tramitam no STF duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade que contestam a necessidade de consentimento expresso do cônjuge para a esterilização voluntária: ADI 5911, do Partido Socialista Brasileiro (PSB) e ADI 5097, da Associação Nacional dos Defensores Públicos (Anadep). O PSB pondera que “essas exigências afrontam direitos fundamentais, contrariam tratados internacionais firmados pelo Brasil, além de divergir dos principais ordenamentos jurídicos estrangeiros”. A Anadep, por sua vez, argumenta que “no Estado de Direito, não cabe, sob pena de desfigurar-se seu centro de identidade, impor restrições à autodeterminação pessoal, em seu aspecto mais essencial, que é a liberdade de dispor do próprio corpo”. Não há prazo para julgamento das ações.

No Legislativo, a Câmara dos Deputados discute o projeto de lei 313/2007 que retira a obrigação do consentimento do cônjuge e reduz para 23 anos a idade mínima para a esterilização voluntária.

No caso de Amélia, a advogada tem consciência que pode buscar uma tutela judicial mas não o fará, “por não querer exposição e desgaste”. Mesmo com chances de êxito em um processo, prefere aguardar o STF, que ainda não tem data para julgar a ADI. Nesse meio tempo, ela optou por um implante hormonal que dura três anos e custa R$ 300.

“Me sinto péssima, o Estado não tem que decidir sobre meu corpo e minha vida, pois eu não estaria estaria lesando e nem prejudicando ninguém”.

*Nome trocado para manter a privacidade da entrevistada.

Nossas Pesquisas de Opinião

Nossas Pesquisas de opinião

Ver todas
Veja mais pesquisas