Países que suspenderam as punições e ignoraram os tabus obtêm resultados melhores nas políticas de planejamento familiar e prevenção da gravidez
(CartaCapital, 02/05/2018 – acesse no site de origem)
Ao contrário do que se propaga em relação ao aborto, sem tabu e sem punição se desenvolvem melhores e mais eficazes políticas de planejamento familiar, prevenção de gravidez e, consequentemente, o aborto legal, seguro e cada vez mais raro.
Este resultado tem sido demonstrado pelos países que optaram por tratar o aborto como uma questão de saúde pública e não como assunto penal.
Nestas nações, a interrupção voluntária da gestação é reconhecida dentro de uma concepção ampla de direitos sexuais e reprodutivos, inserido no sistema de saúde pública, além de uma política pública ampla de prevenção que passa pela educação sexual.
De outra parte, a ilegalidade e a criminalização do aborto tem contribuído apenas para gerar mais tabu e desinformação em relação à sexualidade, mais gravidezes indesejadas, mais mortes de mulheres que recorrem a prática insegura e, paradoxalmente, mais abortos. Enquanto isso, a equação que envolve a legalização do aborto integrado a políticas de educação sexual e prevenção da gravidez resulta em menos abortos.
Está mais do que demonstrado que a criminalização apenas contribui para colocar em risco a vida e a saúde de mulheres que não possuem recursos econômicos para realizar o procedimento de maneira segura e sigilosa. O que chamamos de proibição do aborto é, na verdade, uma restrição econômica de acesso ao aborto nos países onde a prática permanece ilegal.
Mesmo com evidências contrárias, o Brasil prefigura entre os países que insistem em enfrentar a questão do aborto como crime, indiferentemente às absurdas taxas de mortalidade de mulheres pela prática insegura do aborto, sem contudo observar nenhuma redução da prática.
Mas se os números demonstram esta realidade, por que a insistência em criminalizar o aborto? Quem de fato ganha com o tabu e o estigma em torno do tema? Por que certos grupos ligados a outras demandas conservadoras como armamento civil, pena de morte e redução da maioridade penal também se colocam como paladinos do “combate” ao aborto?
É tempo de encarar estas questões com abertura de espírito e honestidade intelectual. Buscar para além do âmbito particular da moral religiosa as soluções para problemáticas que dizem respeito a coisa pública e portanto a uma ética geral. E o momento é propício para isso.
Em março deste ano, o STF finalmente iniciou as chamadas de audiências públicas para ouvir a população a respeito da descriminalização do aborto. As audiências dizem respeito à Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, apresentada no ano passado pelo PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) com assessoria do Instituto de Bioética – Anis.
Na ação, as autoras defendem o entendimento de que aborto não deve ser considerado crime até a 12ª semana de gestação e argumentam que os artigos 124 e 126 do Código Penal, que tratam o aborto como crime, são incompatíveis com o que assegura a Constituição Federal de 1988.
Estes dois artigos representam o descumprimento de preceitos fundamentais como a dignidade da pessoa humana, a cidadania, a não discriminação, a inviolabilidade da vida, a liberdade, a igualdade, a proibição de tortura ou o tratamento desumano e degradante, a saúde e o planejamento familiar das mulheres e os direitos sexuais e reprodutivos.
O número de entidades inscritas, mais de 500, é o mais alto da história do STF, o que demonstra o interesse da sociedade civil neste debate e o quanto esta questão precisa de fato ser debatida.
É aí que entra em cena uma acirrada polarização que conta de um lado com quem defende os direitos das mulheres entendendo a legalização do aborto como uma barreira importante a ser rompida no reconhecimento das mulheres como pessoas plenas; e de outro com quem defende uma moral religiosa que entende a vida humana como dom de Deus desde a concepção. Em um pequeno parêntese, vale lembrar que nunca vemos este outro lado nas trincheiras da luta contra a violência obstétrica, causa de muitas mortes, tanto de mulheres quanto de recém nascidos.
Para quem defende os direitos das mulheres com especial atenção àqueles mais negligenciados que são os direitos sexuais e reprodutivos, a legalização do aborto diz respeito ao direito de todas as mulheres de decidirem sobre o que acontece dentro do seu próprio corpo.
É sinal do reconhecimento social da capacidade das mulheres de tomarem decisões éticas por sua própria consciência, sem a tutela religiosa ou do Estado. De poder optar, enquanto é possível, por interromper uma gestação que apenas resultará em sofrimento, seja pela impossibilidade econômica de assumir esta maternidade, pelo sofrimento de uma gravidez resultante de uma violência sexual, uma situação emocional incompatível com a responsabilidade que seria obrigada a assumir, ou qualquer outra motivação que se apresente como impeditivo.
Quem defende a legalização do aborto entende que o não reconhecimento desta capacidade ética das mulheres de decidirem sobre um processo que se dá dentro de si e que lhe implicará por toda a vida, diz muito sobre a maneira como as mulheres são enxergadas. E diz muito sobre as mudanças que se fazem necessárias.
Por sua vez, grupos religiosos de caráter fundamentalista assumem a “proibição” do aborto, em qualquer tempo ou circunstância, como uma de suas bandeiras mais valorosas. Sustentam valores morais que dizem respeito a uma visão particular de crença como universalmente válidos para reger a vida de todas as pessoas.
Defendem que a vida humana começa na concepção e que deve ser protegida ainda que custe a vida da mulher que a está gerando. Contudo, não demonstram a mesma empatia pela vida constituída, fora do útero. Aparecem como defensores do nascimento sem qualquer compromisso com a defesa da vida após este momento.
Os grupos que defendem a legalização do aborto buscam nos Direitos Humanos os argumentos para defender sua posição. É na própria literatura religiosa que os grupos contrários encontram a sua argumentação que tem como fundo concepções religiosas.
Mas se por algum momento conseguíssemos deixar nossas concepções particulares de lado, o que iríamos enxergar? Enxergaríamos que ambos os grupos deveriam caminhar no mesmo sentido: o da legalização.
Pois se mesmo na ilegalidade o aborto continua sendo praticado clandestinamente, seja por quem tem recurso de maneira sigilosa e segura, seja por quem não tem de maneira arriscada e insegura, provocando sequelas e mortes. Além de políticas obscurantistas que dificultam o acesso a informações e conhecimento a respeito da sexualidade e reprodução. Então todo mundo sai perdendo, tanto quem defende a autonomia das mulheres, quanto quem defende que o aborto não deve ser praticado.
Em contrapartida, com a legalização todo mundo sai ganhando. Ganham as mulheres que têm reconhecida sua capacidade ética de decidir; ganha o sistema público de saúde com a destinação dos impostos provenientes das clínicas particulares que realizam o procedimento e da comercialização legal dos medicamentos; ganha a população em geral com a redução de mortes de mulheres em decorrência de abortos inseguros, com uma educação sexual e acesso a meios contraceptivos que diminuam a gravidez indesejada; e ganha todo mundo com a diminuição real de abortos já comprovada onde sua prática é legalizada.
Ainda assim, os grupos contrários ao procedimento do aborto, não precisam abrir mão de sua posição. Podem continuar crendo pessoalmente em suas convicções religiosas e se contrapondo democraticamente ao aborto.
Portanto, para ambas posições só cabe um caminho possível para sua efetiva realização: a legalização. Fora disso só resta tabu, criminalização e punição que não resolvem absolutamente nada. Ser contra a legalização do aborto é um contrassenso, seja qual for sua convicção.
Gisele Pereira, historiadora e cientista da religião, professora do Ensino Básico; integrante da equipe de coordenação de Católicas pelo Direito de Decidir. Escreve às quartas-feiras