A inclusão da “inviolabilidade do direito à vida desde a concepção” no relatório do texto da PEC 181/2015, que originalmente discutia a ampliação da licença-maternidade para mães de bebês prematuros, é classificada como “fraude” regimental pela deputada Jô Moraes (PCdoB-BA).
(Carta Capital, 28/09/2017 – acesse aqui)
Uma das únicas dos parlamentares não ligados à bancada religiosa e uma das três mulheres da Comissão Especial que analisa a PEC, a deputada Jô Morais (PCdoB-BA) afirma que a proposta atual não guarda nenhuma semelhança com o texto original, além de violar cláusulas pétreas da Constituição.
O imbróglio começou quando a chamada bancada evangélica pressionou o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), a criar uma comissão especial para apreciar a PEC 181/2015. A proposta original (PEC 99/2015) elaborada pelo senador Áecio Neves (PEC 99/2015) previa a ampliação da licença maternidade para mães de bebês prematuros.
O texto aprovado pelos senadores, porém, foi modificado em sua passagem pela Câmara por meio do parecer do deputado evangélico Tadeu Mudalen (DEM-SP). O relatório do político, ligado à Igreja Internacional da Graça, alterou dois artigos da Constituição Federal ao garantir “a inviolabilidade do direito à vida desde a concepção”.
“A tentativa é um desrespeito à legislação vigente sobre os direitos da mulher”, critica Jô Moraes. Confira a entrevista:
CartaCapital: Como a senhora analisa o parecer do deputado Tadeu Mudalen?
Jô Moraes: Considero que o relator frauda uma proposta justa e legítima com o objetivo de garantir uma verdadeira política de ataque aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. A conquista da interrupção da gravidez em casos de risco de vida da mãe e em casos de estupro é do século passado. A tentativa é um desrespeito à legislação vigente sobre os direitos das mulheres.
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A forma como o deputado tenta incluir o parecer reflete uma falta de coragem para defender abertamente um ataque a direitos para viabilizar suas intenções. O projeto do senador Aécio Neves de ampliar a licença maternidade para as mães de bebês prematuros é muito importante e uma reivindicação antiga do movimento de mulheres. O fato do deputado incorporar uma ruptura de uma legislação vigente por meio de uma fraude não merece o respeito de quem quer um parlamento transparente.
CC: O ministro Luís Roberto Barroso afirmou que a proibição do aborto nos três primeiros meses da gestação viola os direitos sexuais e reprodutivos da mulher. O Legislativo reagiu formando a Comissão Especial da Câmara dos Deputados para avaliação da PEC 181/2015. Como a senhora enxerga esse jogo político entre o Judiciário e o Legislativo?
JM: Esse jogo não começou entre o Judiciário e o Legislativo, começou entre os parlamentares que têm uma visão fundamentalista e as mulheres. As movimentações dessas iniciativas de projetos que alteram a Constituição datam de cinco ou seis anos. Sobretudo aquelas conquistas de décadas, como a própria defesa da vida da mulher através do direito de interrupção da gravidez em casos excepcionais.
Esse jogo já data de mais tempo. A brecha do ministro Barroso foi apenas uma oportunidade para que esses parlamentares façam uma pregação dirigida aos seus eleitores, como já vêm fazendo em outros momentos no país
CC: Quando captada por pesquisas de opinião, a percepção é que a sociedade brasileira é contrária ao aborto: 79% são contra a legalização. Por outro lado, estima-se que, só em 2015, 503 mil mulheres optaram por interromper a gravidez. Como a senhora analisa este cenário?
JM: Nenhuma mulher defende o aborto como um instrumento de intervenção ou controle de sua gestação. O aborto é uma ato de invasão no corpo da mulher e dificilmente se dá tranquilamente.
O que nós defendemos é a existência de uma realidade objetiva na vida das mulheres que, por diferentes razões, optam pela interrupção da gravidez. Razões que envolvem violência, preservação da saúde ou pressão social.
Essas circunstâncias ocorrem e cabe ao Estado brasileiro atender e oferecer serviços para garantir a vida dessas mulheres. A escolha religiosa e filosófica de cada um deve ser respeitada. Não podemos impor as nossas escolhas, como esses deputados fazem, a outras pessoas.
Precisamos de uma política de atenção integral à saúde da mulher contemplando-a em todas as fases da vida, da adolescência até o período da maturidade. Por isso o Estado brasileiro deve atender as necessidades, e não impor escolhas individuais, conforme a democracia preconiza.
CC: Há clima para discutir pautas feministas ou que sejam favoráveis aos direitos das mulheres em um Congresso tão conservador?
JM: Essa legislatura é a mais conservadora em relação aos direitos civis e de cidadania. Por exemplo, está tramitando na Câmara o PL 7371/2014, que cria o Fundo Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres, possibilitando o aporte de recursos de diferente fontes para ajudar a implementação das políticas de apoio à mulher vítima de violência.
No entanto, o PL está parado porque um deputado [Diego Garcia (PHS-PR)] quer fazer uma emenda ao texto proibindo a utilização dos recursos em casos de aborto garantidos pelo Código Penal [a legislação assegura a interrupção da gestação em casos excepcionais].
Essas derrotas só são contidas e menores porque nós buscamos fazer manobras regimentais para que esses projetos não tramitem.
A maior e mais simbólica derrota nessa legislatura foi a satanização da palavra “gênero”. Aqui, o termo não pode ser utilizado em nenhum texto de projetos.
CC: Diante de pautas conservadoras, como a alteração feita pelo relator no caso da PEC, quais são as estratégias possíveis de atuação?
JM: Em primeiro lugar, a primeira derrota que nós tivemos foi a composição dirigida da Comissão. A maioria dos partidos indicaram articuladamente uma presença majoritária de deputados e deputadas com uma agenda conservadora e fundamentalista.
Nós já usamos alguns procedimentos regimentais e atrasamos a tramitação. Inclusive, eu e a deputada Pollyana Gama (PPS-SP) apresentamos voto em separado para garantir a aprovação do projeto original. Mas não temos ilusões de ganhar nesta condição.
CC: Faz diferença ter três mulheres na Comissão? As outras duas deputadas são permeáveis ao diálogo?
JM: Nós consideramos que não basta ser mulher para defender direitos das mulheres. Existem algumas mulheres que defendem a bancada conservadora e fundamentalista. E homens da Comissão que defendem os direitos das mulheres. O problema central é como criar um ambiente de diversidade de pensamentos dentro da Comissão. Isso tem sido muito difícil.
Eu vejo que as atitudes mais ofensivas para fazer esta fraude legal são de homens. As mulheres, mesmo concordando com o relatório do Mudalen, não assumem uma posição mais incisiva e presente.
Quando nós falamos em fraude é porque o relatório do deputado altera uma cláusula pétrea, o que só poderia ser feito com uma representação constituinte. Então, regimentalmente, o relatório contra o aborto é uma fraude legal.
E também há a fraude política, ou seja, votar um tema e uma emenda diferentes. O tema é a ampliação da licença maternidade e o Mudalen incorpora a interrupção da gravidez. É o jabuti contra as mulheres.
Por Marcelle Souza