(Época, 11/11/2015) O projeto que dificulta o aborto legal em casos de estupro provocou protestos. Mas não acredito que seja sancionado em plenário
O Brasil deve estar com a vida ganha. Só um país que resolveu a maioria de seus problemas pode se dar ao luxo de desperdiçar energia com um projeto de lei para dificultar o que já é difícil. O presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), acha que vai coibir abortos se aumentar um pouco mais a dor e a humilhação das vítimas de violência sexual. Com o Projeto de Lei 5.069, aprovado na Comissão de Constituição e Justiça, ele pretende confiscar o direito legal de realizar um aborto seguro em casos deestupro, sem precisar de boletim de ocorrência ou da realização de exame do corpo de delito. Não é preciso ser mulher para imaginar o que é entrar numa delegacia e denunciar alguém da própria família ou do crime organizado.
Eduardo Cunha não está preocupado com a segurança das vítimas nem parece confiar na palavra das mulheres que, diante da tragédia da gravidez resultante de crime, reúnem forças e procuram um dos raros serviços públicos de saúde onde é possível interromper a gestação. Se olhasse nos olhos dessas brasileiras e se inteirasse das estatísticas, talvez se surpreendesse com o fato de que o direito garantido por lei é negado à maioria das vítimas. Segundo um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), com dados do Sistema Único de Saúde (SUS), 67,4% das grávidas em decorrência de estupro em 2011 não tiveram acesso ao serviço de aborto legal. Resta a clandestinidade. As vítimas pobres se submetem à barbárie das agulhas de tricô, do arame, da soda cáustica e de outros métodos abortivos. Encontram mais sofrimento, sequelas permanentes ou morte. As mulheres com mais recursos podem interromper a gravidez em clínicas particulares. Isso não significa que abortar seja fácil. Nunca é.
Mulher nenhuma se sente confortável diante da ideia de interromper uma gestação, mesmo quando indesejada. Se o deputado Cunha pretende evitar abortos, deveria se unir às mulheres que foram às ruas pedir a legalização em qualquer circunstância. “A crença de que leis mais restritivas reduzem o número de abortos não tem amparo nas evidências científicas”, afirma o professor Anibal Faúndes, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenador do Grupo de Trabalho de Prevenção ao Aborto Inseguro da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia. “A realidade demonstra o contrário.”
Um estudo publicado na revista britânica The Lancet em 2012 revelou que a taxa de abortos é mais baixa em países liberais. Nos países onde a prática é legal, ocorrem, em média, 19 abortos a cada 1.000 mulheres de 15 a 44 anos. Nos mais restritivos, o índice é de 33 a cada 1.000. Em vez de aumentar o número de abortos, como Cunha imagina, a legalização levou à redução das taxas na França, na Itália, em Portugal e em outras nações europeias, asiáticas e africanas. O mesmo fenômeno já é observado no Uruguai, onde o aborto foi legalizado há dois anos – caso único na América Latina.
A razão de a taxa de aborto cair com a legalização é simples. Com ou sem lei, as mulheres interrompem gestações indesejadas. Quando o aborto é legalizado, a facilidade de acesso a serviços de saúde permite que as pacientes sejam educadas corretamente sobre os métodos contraceptivos e recebam esses recursos gratuitamente. É o que faz a diferença. Em cerca de 50% dos casos, não é a primeira vez que a mulher aborta. Quando a experiência deixa de ser clandestina, o trabalho dos profissionais de saúde reduz esses abortos de repetição. A ilegalidade apenas alimenta o mercado de soluções abortivas que produzem sofrimento e morte. É um dos mais graves problemas da saúde pública brasileira – e nesse âmbito deve ser discutido. Os abortos clandestinos são a terceira causa de mortalidade materna no país – atrás apenas dos casos de hipertensão durante a gestação (eclâmpsia) e hemorragias não provocadas. A cada dois dias, uma brasileira morre vítima de aborto inseguro. Por ano, ocorrem entre 850 mil e mais de 1 milhão de procedimentos de interrupção da gravidez à margem da lei.
A energia das mulheres, das meninas e dos homens de bom-senso que foram às ruas protestar contra o projeto de Cunha deve ser canalizada para a discussão que interessa: a do direito à saúde e à liberdade de escolha sobre o próprio corpo. É um debate necessário e sempre abafado. Em 2007, o então ministro da saúde, José Gomes Temporão, se tornou a primeira autoridade a defender publicamente a realização de um plebiscito sobre a legalização do aborto. A declaração fez barulho, mas o debate não avançou. “Não tive nenhuma censura dentro do governo”, afirma Temporão. “O presidente Lula também achava que aborto era uma questão de saúde pública, mas dizia que essa não era uma questão para o Executivo, e sim para o Congresso.”
A aprovação do projeto de Cunha, ainda que numa etapa preliminar, demonstra a insensibilidade de grande parte dos parlamentares para os direitos femininos mais básicos. “Estamos vendo o projeto político de um setor medieval, de homens fora do tempo, legislando sobre as mulheres e tentando impor sua visão religiosa a toda a sociedade”, diz Temporão. Não acredito que o projeto acintoso de Cunha seja aprovado em plenário. Muito menos que seja sancionado pela presidente Dilma. Acredito no triunfo da informação, ainda que tardia. As adolescentes que foram às ruas, tão conscientes de seus direitos (muito mais do que eu era na idade delas), me fazem ter fé em dias melhores.
Cristiane Segatto é repórter especial de ÉPOCA, escreve sobre medicina desde 1995. Ganhou cerca de 20 prêmios nacionais e internacionais de jornalismo, entre eles dois Essos de informação científica, em 2012 e em 2014. Em 2015, foi finalista do Prêmio Gabriel García Márquez, com a reportagem “O lado oculto das contas de hospital”
Acesse no site de origem: O triunfo da informação – ainda que tardia, por Cristiane Segatto (Época, 11/11/2015)