Presidente de associação sobre direito médico e saúde fala sobre julgamento do STF sobre aborto?
(Jota, 20/12/2016 – acesse no site de origem)
O julgamento de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade que descriminaliza o aborto para mulheres infectadas pelo vírus da zika leva mais uma vez a questão da interrupção da gravidez ao Supremo Tribunal Federal (STF).
O caso deverá ser julgado no inicio de 2017, depois de ter sido pautado e adiado no dia 07/12. Os ministros da mais alta Corte do país vão analisar ação proposta pela Associação Nacional dos Defensores Públicos (Anadep) – ADI 5581 – que questiona as políticas públicas do governo federal na assistência a crianças com microcefalia e outras lesões neurológicas causadas pelo vírus.
Em entrevista ao JOTA, a presidente da Academia Brasileira de Direito Médico e da Saúde (ABDMS), Sandra Franco, fala sobre a urgência da discussão sobre aborto numa situação de exceção, de falha do Poder Público na contenção vertiginosa de contaminações pela picada do mosquito.
“Principalmente em casos especiais, a decisão do Supremo não é a de obrigar a fazer um aborto e nem, igualmente, obrigar a não fazer”, afirma a especialista em saúde pública.
JOTA – Por que o aborto nos casos de mulheres infectadas pelo zika precisa ser discutido pelo STF?
Sandra Franco – A Associação Nacional dos Defensores Públicos decidiu propor uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), que representa um tipo de ação, ajuizada exclusivamente no STF, que tem por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público. A proposta é a de discutir, a partir das políticas públicas que foram propostas na Lei 13.301/2016 a omissão do Estado sobre a possibilidade de interrupção da gravidez para mulheres grávidas infectadas pelo vírus zika.
Nesse sentido, o pedido é para que se determine ao Poder Público a adoção de diversas políticas públicas visando sanar tais omissões, entre elas a garantia de tratamentos a crianças com microcefalia em centros especializados em reabilitação distantes no máximo 50km de suas residências, a entrega de material informativo e a distribuição de contraceptivos de longa duração às mulheres em situação vulnerável.
Esta ação está combinada com a ADI sobre a mesma matéria, ambas de competência do STF. Questiona-se, por exemplo, o Benefício de Prestação Continuada (BPC), previsto na Lei Orgânica da Assistência Social (Lei 8.742/1993), garante um salário mínimo à pessoa com deficiência e ao idoso que não tenham meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida pela família.
Segundo os procuradores, na forma em que foi redigido, o caput do artigo 18 da nova Lei 13.301/2016 restringe inconstitucionalmente o seu recebimento para apenas três anos, beneficiando somente crianças com microcefalia, e não com outras desordens identificadas como sinais da síndrome congênita do zika, e impede o recebimento do benefício de forma concomitante com o salário-maternidade.
Quais são as consequências da criminalização do aborto nos casos de mulheres infectadas pelo vírus da zika?
O aborto é crime como regra e descriminalizado apenas em casos específicos, previsto no Código Penal. No momento não há exceção que contemple a descriminalização para os casos com diagnóstico de microcefalia. O problema da não permissão é que a mulher rica ou pobre que decidir pelo aborto estará cometendo um crime – não somente ela, mas os envolvidos no ato, inclusive o médico.
A verdade é que raramente se saberá quando uma mulher com condições financeiras faz o aborto. Mas, as mães que se utilizam exclusivamente do SUS não poderão ter assistência médica pública. E, como sempre ocorre, se decidirem pelo aborto, terão de buscar serviços clandestinos para fazê-lo, muitas vezes, em lugares sem condições mínimas de segurança para as mulheres.
Essas mesmas mulheres serão recepcionadas pelo SUS, em havendo complicações, o que, sem dúvida, tornara o atendimento muito mais dispendioso para se tratar os desdobramentos na saúde da mulher em razão do aborto, do que se o Estado tivesse assumido o procedimento, oferecendo hospitais preparados.
De outro lado, as crianças nascidas com microcefalia carecem de cuidados profissionais específicos e por uma equipe multidisciplinar para que as sequelas tenham uma extensão menos gravosa. Ademais, as mães dessas crianças não terão uma escola creche diferenciada ou escola especial pública para seus filhos com necessidades especiais e, consequentemente, não poderão trabalhar.
Para a sociedade, por onde quer que se examine essa triste evidência, será sempre negativo obrigar a mulher sem condições financeiras a ter um filho com os problemas neurológicos e motores que essas crianças representam.
Em que uma decisão favorável à interrupção da gravidez nos casos de mulheres infectadas pelo zika pode influenciar numa possível decisão sobre a descriminalização sobre o aborto?
Aqueles que são contra o aborto veem qualquer passo a favor da descriminalização do aborto como nociva à sociedade, por achar que está se abrindo mais um precedente que acabará por inviabilizar, do ponto de vista social, a mantença do aborto como crime, o que não é necessariamente verdadeiro.
Alegam que se o aborto legal for permitido em todos os casos, se iniciará um infanticídio (ou melhor, um “feticídio”), ao contrário da realidade já demonstrada em outros países, inclusive da América do Sul, em que o aborto foi descriminalizado e ainda assim caiu o número de mulheres que fazem essa opção. Ou seja, a descriminalização não é um estímulo.
Sempre haverá uma forma de o tema chegar ao Supremo. Mas, acredito ser improvável que cheguemos a descriminalização total do aborto, isto porque cada vez é maior a influência e o poder de bancadas religiosas no Congresso e no Senado.
Existe uma confusão entre a descriminalização da interrupção terapêutica da gravidez – como ocorreu no caso de gestações de fetos anencéfalos – e a legalização do aborto?
O chamado aborto terapêutico foi aprovado como forma de se garantir a autonomia da mulher em uma situação em que se tem a certeza de que o feto pouco ou nada sobreviverá após o nascimento. Trata-se de um caso em que não se espera uma criança viável e a mulher, a partir desse diagnóstico, precisava ter o direito de decidir se continuava a criar aquele bebê.
Muitas pessoas, para defender que o aborto continue sendo crime, usam o argumento de que, autorizada a interrupção nos casos de grávidas infectadas pelo zika, se estaria abrindo caminho para uma “eugenia”. Como a senhora avalia esse argumento?
Temos de contextualizar o aborto. Ele ocorre sempre, todos os dias – não sabemos o número ao certo, pois não há registro pelas clínicas e hospitais em que o procedimento ocorre. Temos sim uma ideia do número de abortos clandestinos – em especial quando estes se tornam casos de saúde pública, por representarem tentativas de automedicação descontrolada ou ainda uso de objetos estranhos inseridos no próprio corpo e provocando infecções que levam mulheres até à perda do útero ou da vida.
Particularmente, não acredito que as mulheres pratiquem aborto e se sintam psicologicamente ilesas – as consequências são grandes, mesmo que somente morais. Nunca será uma simples escolha. Na verdade, o conceito de eugenia está mais próximo da seleção de características de embriões ou do descarte de embriões que são descartados (sem qualquer medida punitiva), após a identificação de alterações genéticas feitas em laboratórios. São descartados embriões com grande possibilidade de desenvolver uma série de doenças mentais – se fosse possível identificar que aquele embrião daria origem a um feto e depois a uma criança com microcefalia também ele não seria descartado?
E, do ponto de vista moral, em que seria diferente do aborto? A questão é complexa eticamente – juridicamente, os limites estão estabelecidos. Em 2013, a Federação Internacional das Organizações de Síndrome de Down, que reúne 30 associações de 16 países, entrou com uma representação na Corte Europeia de Direitos Humanos para proibir o exame com a afirmação de que o diagnóstico poderia motivar o aborto ou o impedimento da gestação de crianças com doenças que não são uma sentença de morte, como o Down.
Ou seja, a seleção de embriões parecer ser uma medida tão ou mais “eugênica” do a descriminalização do aborto – mas, apenas o aborto é ilegal.
Em nome do “direito à vida”, alguns setores da política se mobilizam contra uma decisão favorável ao aborto para grávidas infectadas com o vírus da zika. Como a senhora avalia este tipo de movimentação?
Nenhum direito é absoluto. O direito à vida do feto não é menos importante que o direito à dignidade e do exercício da autonomia da mulher. Assim, considero importante que se discuta sim o tema por todos os ângulos, até porque mesmo o aborto deve ser um ato de decisão após uma reflexão profunda, porque sem dúvida se estará tirando a chance de alguém viver, ainda que de forma totalmente dependente dos pais ou de terceiros, como é o caso das crianças com deficiências, especialmente mentais.
A Pesquisa Nacional do Aborto 2016, coordenada por Debora Diniz, Marcelo Medeiros e Alberto Madeiro e realizada pelo Instituto de Bioética (Anis) e pela Universidade de Brasília (UnB) mostrou que no Brasil 4,7 milhões de mulheres entre 18 e 39 anos já fizeram aborto. Na sua opinião, como esse dado pode ser interpretado? Estamos diante de mais de 4 milhões de criminosas?
Do ponto de vista jurídico sim. Mas, sociológica e psicologicamente, são pessoas que, em sua maioria, fizeram opções extremas em uma situação pontual.