O Papa Francisco não chega a comover. Elas não vão à missa aos domingos, defendem o Estado laico, a contracepção, o casamento gay e, há quase 25 anos, o aborto.
(BBC Brasil, 18/12/2017 – acesse no site de origem)
O mais antigo movimento no Brasil de católicas que pregam os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres nasceu entre um grupo de jovens que se inquietavam com questões que não ecoavam na Igreja, ainda no início dos anos 90.
“Nós falávamos dos pobres, mas não olhávamos para as mulheres”, diz Regina Soares Jurkewicz, coordenadora do Católicas pelo Direito de Decidir (CDD), referindo-se à Teologia da Libertação, corrente progressista que norteava a atuação das pastorais sociais das quais ela, a professora da PUC-SP Maria José Rosado-Nunes e a teóloga Luiza Tomita, também fundadoras, faziam parte nos anos 80.
Em 1993, elas conheceram a médica uruguaia Cristina Grela – hoje parte da equipe do Ministério da Saúde do Uruguai, único país da América do Sul onde o aborto foi totalmente legalizado, em 2012, até a 12ª semana de gestação – em alguns casos, esse limite é maior.
Naquela época a ativista era integrante do grupo americano Catholics For Choice – que completa 45 anos em 2018 – e fazia um périplo pelo continente na tentativa de organizar um movimento semelhante na região. Além do Brasil, há “Católicas por el Derecho a Decidir” em outros dez países latinoamericanos.
Depois de um evento na Igreja do Carmo, em São Paulo, o movimento foi lançado no dia 8 de março daquele ano. Está presente hoje em 14 Estados e atua em duas frentes – a educativa, com a produção de material didático para o ensino da religião e a realização de seminários para formação de multiplicadoras, e política, organizando debates, marchas e idas a Brasília.
Em uma de suas campanhas mais recentes, o CDD foi às ruas em novembro para protestar contra a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 181, que pode criminalizar o aborto mesmo nos casos em que ele hoje é permitido, como em gestações resultantes de estupro.
Entre seus membros, leigos e religiosos, está a freira feminista Ivone Gebara, punida pelo Vaticano em 1995 por defender publicamente em uma entrevista a descriminalização e a legalização do aborto.
Na época à frente da Congregação para a Doutrina da Fé, o cardeal Joseph Ratzinger – que anos depois se tornaria o papa Bento 16 – determinou que ela voltasse à Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, onde obteve seu doutorado, para passar dois anos reclusa, em “reeducação teológica”.
Por não estar ligado à estrutura da Igreja, contudo, o movimento em si está fora dos limites de repreensão da hierarquia católica. As perseguições também não são frequentes, diz Jurkewicz.
O que há são questões pontuais como a de Gebara e a que ela mesmo enfrentou quando publicou seu doutorado. Logo após a apresentação do trabalho, que reunia 21 casos de abuso sexual de mulheres por padres, a assistente social foi demitida da universidade em que lecionava, ligada à diocese de Santo André.
O antagonismo mais organizado vem de setores conservadores da religião, de instituições como Arautos do Evangelho e Opus Dei.
As “ameaças”, dizem, chegam geralmente por email ou pelas redes sociais. “São mensagens dizendo que a gente vai para o inferno, essas coisas. Nada grave.”
O aborto sempre foi considerado pecado?
Para defender o aborto dentro da lógica religiosa, as ativistas argumentam que o início da vida sempre foi um ponto de divergência dentro da fé católica.
Nos primeiros séculos do cristianismo, exemplifica Jurkewicz, houve Santo Agostinho, que condenava o controle de natalidade e o aborto por romperem a conexão entre ato conjugal e procriação, mas que afirmava que ele não era um ato de homicídio.
Seus escritos a respeito do Êxodo diziam, sobre o feto, que “não existe alma viva em um corpo que carece de sensações”. Ele nunca chegou a uma conclusão sobre o momento em que a vida começava.
Já o teólogo Tertuliano defendia em 160 que a concepção era o início de tudo e, por isso, condenava a prática.
“Não é um dogma de fé, é uma questão disciplinar”, diz ela, acrescentando que nos cadernos penitenciais da Igreja na Idade Média o aborto era colocado entre outros pecados sexuais.
Os Cânones Irlandeses de 675, por exemplo, previam 14 anos a pão e água para aquele que tivesse relação sexual com a vizinha e três anos e meio para quem destruísse um embrião no ventre.
O tema passou a ser oficialmente condenado pela Igreja apenas em 1869, a partir de um boletim do papa Pio 9.
A posição da Igreja hoje e o papa Francisco
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em sua nota “Pela vida, contra o aborto”, de abril deste ano, afirma que “a tradição judaico-cristã defende incondicionalmente a vida humana”.
O texto defende a “integralidade, inviolabilidade e a dignidade da vida humana desde a sua concepção até a morte natural” e condena “todas e quaisquer iniciativas que pretendam legalizar o aborto no Brasil”.
“A posição sempre foi a mesma: defender e cuidar da vida humana desde a sua concepção. A vida humana é preciosa demais para ser eliminada ou descartada”, diz o bispo auxiliar de Brasília e secretário-geral da CNBB, dom Leonardo Steiner, em nota enviada à BBC Brasil.
O papa Francisco manteve o entendimento que herdou dos antecessores, apesar de ter autorizado, em novembro do ano passado, que padres pudessem perdoar o aborto – prerrogativa que antes era restrita a bispos ou confidentes especiais da Igreja.
“A ideia (por trás da iniciativa do Papa Francisco) é mais de compaixão, de perdão. A Igreja não trabalha com direitos (para as mulheres)”, diferencia Jurkewicz.
As ativistas do CDD são críticas em relação ao papel do feminino na Igreja Católica, que limitaria “os espaços de poder e saber” aos homens.
“A posição oficial guarda a tradição da mulher como mãe, está carregada de atributos de gênero. Mesmo as freiras são vistas como ‘mães espirituais'”, ressalta.
São Tomás de Aquino
O princípio do “recurso à consciência” é outro argumento usado pelas ativistas para defender suas bandeiras e o primeiro destacado pelo movimento do qual se originou o CDD, o americano Catholics for Choice (CFC).
A ideia é que cada católico tome decisões guiadas pelo pensamento individual, ponderando o efeito de suas ações sobre si e sobre o próximo, e que respeite o arbítrio do outro.
“São Tomás de Aquino afirmava que nossa consciência não é um atributo das instituições”, diz Amanda Ussak, diretora do programa internacional do CFC.
A organização surgiu nos Estados Unidos em 1973, ano em o aborto foi legalizado no país após decisão da Suprema Corte no emblemático caso Roe v. Wade.
Prevendo uma onda de reações contrárias de instituições religiosas, um grupo de católicas decidiu se reunir e se contrapor às pressões por recuos. Uma década depois, o movimento deu início à sua expansão internacional.
A iniciativa, afirma Ussak, veio da percepção de que criminalização do aborto prejudicava especialmente as mulheres pobres, grupo que ainda hoje registra o maior número de mortes por complicações em procedimentos feitos em clínicas clandestinas.
Hoje a organização atua também na Europa e na África, dando treinamento às organizações para comunicar as campanhas e apoio às iniciativas para mudar as leis locais.
Um exemplo recente de atuação nesse sentido aconteceu no Chile, onde o Congresso aprovou, em agosto, a descriminalização em caso de risco de vida da mulher, inviabilidade fetal e estupro. Até então, qualquer tipo de aborto era proibido.
Na Argentina, o Católicas por el Derecho a Decidir (CDD) participou das discussões que culminaram, em 2006, na Lei de Educação Sexual Integral – semelhante à educação de gênero hoje debatida no Brasil -, na Lei para Prevenir e Erradicar a Violência contra a Mulher, de 2009, e a Lei de Identidade de Gênero, de 2012, que permitiu que travestis e transexuais escolhessem o sexo no registro civil.
“Nos falta ainda a legalização do aborto”, afirma Victoria Tesoriero, uma das coordenadoras do movimento argentino.
As evangélicas
Hoje há iniciativas semelhantes às ONGs católicas entre mulheres pentecostais e neopentecostais. O Evangélicas pela Igualdade de Gênero (EIG), por exemplo, nasceu em 2015 voltado especialmente para a questão da violência contra a mulher.
“Eu nasci nas Assembleias de Deus, no movimento pentecostal, e durante muito tempo testemunhei todo tipo de violência, institucional, simbólica, assédio”, conta Valéria Vilhena, uma das fundadoras da rede, que hoje soma 3 mil mulheres.
Em sua tese de mestrado, feita na Universidade Metodista, onde dá aulas hoje, ela mergulhou no cotidiano de uma casa de acolhimento para vítimas de violência doméstica em São Paulo e verificou que 40% das atendidas eram evangélicas.
O aborto, para ela, entra na problemática da negação de direitos às mulheres e da violência. A posição pública a favor, contudo, veio apenas neste ano, em reação à PEC 181.
“Não estamos trabalhando a questão da legalização a partir da Bíblia porque nós queremos desvinculá-la da questão religiosa. É uma questão de saúde pública”, destaca. “A questão é essa: mulheres morrem”, emenda.
Camilla Veras Mota