Quando pensamos em autocuidado, muito provavelmente a imagem que vem à sua mente é a de uma mulher usando roupão, passando creme no rosto ou até mesmo recebendo uma massagem, certo? Eu fico me perguntando: o quanto essa imagem nos distancia do que, de fato, são práticas de autocuidado? E por que nós, mulheres negras, passamos por tantos obstáculos para ter acesso a coisas simples, que são — ou deveriam ser — nossas por direito?
O termo autocuidado, que ficou fortemente associado a questões estéticas, na verdade refere-se a um conjunto de práticas que vai muito além de fazer skincare ou curar doenças. De acordo com o dicionário Priberam, autocuidado é o “conjunto de ações ou procedimentos de cada indivíduo, destinado à manutenção da vida, da saúde e do bem-estar”. Passar um creme no rosto é bom, mas do que adianta, se o básico não está sendo feito?
A escritora norte-americana Audre Lorde evocou o termo autocuidado e trouxe uma perspectiva coletiva e voltada para pessoas marginalizadas pela sociedade — uma perspectiva interessante para pensarmos em como avançar contra certas barreiras, que muitas vezes nos impedem de alcançar práticas cotidianas. Pensar em autocuidado numa sociedade com altos índices de violência contra certos grupos, como mulheres, pessoas negras, LGBTQIAP+, entre outros, demanda toda uma estratégia, que, inclusive, Lorde compara a uma estratégia de guerra.
Quantas vezes você hesitou em buscar assistência médica por não se sentir acolhida naquele espaço? Quantas vezes, ao ir para uma consulta, teve sua dor invalidada por ouvir que “aquilo é normal”? Quantas vezes, em vez de orientação, você recebeu julgamento por parte de quem estava ali para cuidar? Existe toda uma questão socioeconômica que, muitas vezes, impede o acesso a atendimentos básicos de saúde — mas outras questões vão além e também precisam ser discutidas.
No Brasil, só em 2001, depois da 3ª Conferência Mundial contra o Racismo, a Xenofobia e outras formas de Intolerância, é que a questão racial passou a ter um pouco mais de visibilidade dentro do debate em relação à saúde. Você consegue imaginar o impacto disso? Pessoas negras lidando com negligência nos atendimentos, mulheres negras sendo, em sua maioria, vítimas de violência obstétrica e a falta de conhecimento sobre o manejo de prevenção à saúde da população LGBTQIAP+.
Hoje em dia, contamos com algumas cartilhas do governo focadas em prevenção de doenças, promoção da saúde e cuidados, mas é algo recente — e que precisa continuar avançando para que se fortaleçam e cheguem cada vez mais às pessoas que necessitam.
Pensando em todas essas informações, te convido a fazer um mergulho na sua própria história. A base do autocuidado é o autoconhecimento e, sem ele, algumas práticas podem ser em vão. Isso porque nossas necessidades precisam ser enxergadas de modo individual e, assim, poderemos pensar em como acessá-las. Sem achar que a rotina de alguém que você segue nas redes sociais vai caber em você também. Isso só nos leva a mais frustração.
E não podemos nos esquecer de quem caminha com a gente, pois o autocuidado também é coletivo. Ao falar de mulheres negras, é preciso pensar que é caminhando coletivamente que nossos caminhos vão sendo construídos e pavimentados. A solidão é uma arma e enfraquece. É na troca coletiva que nossas forças se renovam.
Em meio à correria do dia a dia, muitas coisas são feitas de modo automático e, muitas vezes, você só escuta seu corpo quando ele não funciona como você gostaria. Minha sugestão é que você olhe suas faltas e veja: o que aí dentro de você precisa ser visto, acolhido e cuidado? O que você sente quando sai do automático?
Sei que, muitas vezes, o processo de olhar para as próprias dores pode ser doloroso — mas é através disso que as coisas podem caminhar.
Fortaleça sua rede de apoio! Construir e fortalecer uma rede de apoio sólida é um dos maiores desafios em tempos neoliberais em que precisamos lutar muito para fazer o básico. Muitas vezes, é o carinho das pessoas que nos cercam que nos traz algum alento em meio à solidão do dia a dia. Fazer-se presente para os outros é um modo de buscar vida em outros espaços.
A ideia de fazer coisas que não sejam trabalhar e cumprir obrigações muitas vezes é vista como desperdício, perda de tempo, vadiagem. Vou te contar: é só quando você para que seu corpo e sua mente conseguem se recuperar do cansaço — e é a partir disso que você vai ter mais fôlego de vida. Sem isso, pouco a pouco, você se sufoca, adoece e seu corpo para, sem que você tenha nenhum controle sobre isso.
Eu gostaria de te dizer também que um dos maiores atos de autocuidado que você pode praticar por si mesma é dizer não em determinadas situações. Estabelecer limites dentro das relações pessoais e profissionais vai te ajudar a cuidar melhor do seu tempo e vai fazer com que você se respeite ainda mais. Lidar com a culpa e o estranhamento faz parte do processo, mas lembre-se: não existem mudanças sem encarar desconforto.
Por fim, não se esqueça do básico. Faça seus exames preventivos, tome seus remédios corretamente, exercite-se pensando que seu corpo precisa estar em movimento e é através dele que você vai chegar onde quer.
Cuide das suas finanças: não caia na armadilha de comprar besteiras por impulso. É cuidando do seu dinheiro que você vai ter tranquilidade para viver bem. E não se esqueça de consumir arte. Sei que pode parecer algo distante da sua realidade, mas é através da arte que conseguimos, muitas vezes, elaborar nossos sentimentos, conhecer o mundo e também desenvolver nosso senso crítico. O sistema perde sempre que temos repertório para bater de frente e questionar o que nos é dado.
Eu não quero que este texto te cause culpa por talvez estar em falta consigo mesma. Quero que, através dele, você enxergue o que te impede de acessar o real autocuidado — e que, a partir daqui, suas práticas sejam repensadas e você construa, todo dia, um pouquinho de uma vida que faça cada vez mais sentido para você.
Tamara Solano é psicóloga formada pela Universidade Anhembi Morumbi, especialista em Saúde Mental e psicanalista em constante formação. Atua na clínica desde 2020, com experiência no acompanhamento terapêutico de mulheres e na mediação de grupos com foco em autocuidado. Também é consultora em saúde mental para empresas e co-autora da cartilha “Autocuidado possível e viável”, voltada para a promoção da autonomia emocional.