Para além de Gilead: A realidade da violência contra mulheres e meninas negras no Brasil, por Julia Cruz

22 de julho, 2024 Opinião Por Julia Cruz

Quando assisti à série “O Conto da Aia”, uma adaptação do romance distópico da escritora canadense Margaret Atwood, senti como se a realidade das mulheres e meninas brasileiras estivesse sendo retratada diante dos meus olhos. Os episódios iniciais me provocaram um profundo horror e revolta, ao mostrar a opressão, a violência e o controle reprodutivo das mulheres. O que no início parecia apenas ficção tomou forma, refletindo cada vez mais a realidade que enfrentamos em nosso país.

A série, ambientada em um futuro próximo, retrata de forma contundente o controle opressivo sobre os corpos femininos e a violação dos direitos reprodutivos através de uma política que obriga as mulheres a conceberem e darem à luz crianças destinadas a servir a elite dominante, especialmente os “comandantes” da República de Gilead, o cenário central da trama. As mulheres são severamente oprimidas e divididas em categorias rígidas com funções específicas. A protagonista, Offred, é uma “aia”, cuja única função é a procriação após uma catástrofe nuclear. Em minha opinião, essa analogia não é mera coincidência, visto que o Brasil está progressivamente adotando práticas semelhantes com o avanço da extrema-direita e os esforços contínuos para reverter direitos já conquistados.

Um exemplo atual é o debate gerado pelo Projeto de Lei 1904/24, conhecido como PL da Gravidez Infantil, que visa equiparar o aborto previsto por lei realizado após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio simples, inclusive nos casos de gravidez resultante de estupro. Nesse sentido, embora no Brasil a interrupção da gravidez seja permitida em três situações específicas – estupro, risco de vida para a pessoa gestante e anencefalia fetal – propostas legislativas cada vez mais restritivas, como o PL 1904/24, têm incentivado práticas clandestinas e inseguras, resultando em um aumento de mortes e complicações para mulheres e meninas, especialmente as negras, maiores vítimas da violência sexual no Brasil. 

Dados da 18ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgados em 18 de julho, destacam a alarmante vulnerabilidade das mulheres e meninas negras às violências de gênero e raça. Os registros de estupro aumentaram 6,5% entre 2022 e 2023, alcançando um novo recorde de 83.988 casos registrados pela polícia. Em 76% das ocorrências, as vítimas tinham menos de 14 anos, o que segundo o Código Penal brasileiro configura crime de estupro de vulnerável, que é a prática de conjunção carnal ou ato libidinoso com crianças nessa faixa etária. O perfil das vítimas de estupro e estupro de vulnerável manteve-se consistente em relação aos anos anteriores do levantamento: 88,2% das vítimas são meninas, 52,2% são negras e 61,6% têm no máximo 13 anos.

Embora legalmente o aborto seja permitido nos três casos mencionados, a realidade é que apenas uma média de 1.800 abortos legais foram realizados anualmente em hospitais públicos nos últimos oito anos, segundo a plataforma abortonobrasil.info, da Revista AzMina. Esse número contrasta drasticamente com a incidência de estupro nos últimos anos e a média de 25 mil gestações em meninas de até 14 anos anualmente no Brasil, conforme dados do estudo “Estupro presumido no Brasil – caracterização de meninas mães em um período de dez anos (2010-2019)”, realizado pela Rede Feminista de Saúde com coordenação da organização Criola. 

Outra contribuição importante para este debate é o estudo da Associação de Pesquisa Iyaleta, intitulado “Aborto no Brasil: inseguro, ilegal e criminalizado”, que destaca que mais de metade dos casos de aborto inseguro no país utilizando substâncias tóxicas entre 2012 e 2022, cerca de 54% do total, envolvem mulheres, meninas negras (pretas e pardas). Esses números evidenciam as barreiras institucionais resultantes do racismo, que restringem o acesso das mulheres e meninas negras aos serviços de saúde reprodutiva e contraceptivos adequados – realidade que as coloca à margem de seus direitos e sob risco constante de morte.

Nesse sentido, as violências de gênero e raça representam uma realidade trágica para mulheres e meninas negras. O avanço do PL 1904/24 na Câmara dos Deputados, a perseguição do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP) aos profissionais de saúde, e a norma do Conselho Federal de Medicina (CFM) que proíbe médicos de realizarem o procedimento de assistolia fetal para interrupção de gestações avançadas precisam considerar as graves implicações dessas ações para essa população. Não se pode discutir o aumento das penas para mulheres que abortam sem levar em conta as estruturas violentas do racismo e do patriarcado. Em uma sociedade verdadeiramente democrática, políticas de saúde não devem criminalizar mulheres e meninas vítimas de estupro mais do que os agressores. Além disso, é crucial reconhecer que a criminalização afeta desproporcionalmente mulheres e meninas negras em todos os seus estágios de vida. 

Diante desses desafios, os paralelos entre ficção e realidade ressaltam a urgência de proteger e expandir os direitos das mulheres, meninas e pessoas que gestam no Brasil, especialmente diante de retrocessos políticos que ameaçam conquistas históricas. Cabe às organizações feministas, movimentos sociais e de direitos humanos continuar denunciando as violências sistemáticas que relegam as mulheres e meninas negras ao sofrimento e à revitimização. Caberá sempre a nós, pessoas comprometidas seriamente com a vida das mulheres e meninas, o papel de defender o óbvio: criança não é mãe e estuprador não é pai. 

Julia Cruz é mulher negra, graduada em Jornalismo e cursa pós-graduação em Antropologia na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP). É coordenadora de comunicação no Instituto Patrícia Galvão, organização feminista comprometida com a promoção dos direitos das mulheres e a equidade de gênero e raça

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