Muita briga para arbitrar início da vida, nenhuma preocupação com o direito de viver com dignidade.
Na última semana, com a aprovação na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da PEC 164/12, os parcos direitos reprodutivos das mulheres, meninas e pessoas que gestam no Brasil foram novamente atacados. Setores fundamentalistas do legislativo continuam dedicados ao projeto de manutenção da estrutura de dominação masculina e patriarcal, tentando nos relegar a um papel social de reprodutoras e cuidadoras.
Há muito alertamos que mudanças legislativas desse tipo são prejudiciais e colocam em risco a vida de meninas, mulheres e pessoas que gestam, perpetuando violências enclausuradas no âmbito privado. Essas violências permanecem sem enfrentamento devido à falta de estrutura e de interesse do poder público em acolher e proteger vítimas de forma eficaz.
Em razão de iniciativas como essas e tantas outras que assaltam nossos direitos diariamente, somos forçadas a vivenciar a deterioração da nossa saúde e bem-estar, aprisionadas em um sistema que inviabiliza a experiência de uma vida livre e plena.
A justificação da proposta, que determina de forma arbitrária um marco para o início da vida, sequer considera as consequências práticas do que propõe, como a inviabilização do aborto nos casos autorizados pelo nosso ordenamento, que tratam de situações extremas como a gravidez gerada por um estupro, a anencefalia do feto e o risco de morte da pessoa que gesta. Além disso, pode descontinuar pesquisas e procedimentos com células-tronco, cruciais no tratamento de doenças e na preservação de vidas já existentes.
Para os defensores dessas pautas, tais implicações pouco importam. O objetivo real é vencer a corrida pelo poder e, de prêmio, consolidar mais uma ferramenta de tutela dos corpos de grande parte da sociedade, que equivale aos homens em número populacional, mas se encontra em uma posição bem mais vulnerável, longe de alcançar a equidade de direitos supostamente garantida pelo mesmo artigo constitucional que pretendem alterar.
Cabe questionar: que vida essas autoridades prometem garantir para os bebês hipotéticos que afirmam defender? Quais esforços são feitos para melhorar as condições de um país que violenta sistematicamente crianças e adolescentes e segue falhando de maneira espetacular na proteção dessas vidas, a partir do momento que acontecem fora do útero? Como sustentar uma ideologia que ignora a violação ininterrupta de direitos fundamentais, enquanto alega defender a vida como prioridade? De que tipo de vida estamos falando?
Essas medidas populistas utilizam pautas de costumes como moeda de troca e jogam com a vida das cidadãs brasileiras, desconsiderando o que uma criança ou qualquer pessoa precisa para ter uma vida que não seja carregada de violência, privação e sofrimento. Sob essa ótica perversa, direitos fundamentais como saúde, educação, liberdade e dignidade tornam-se responsabilidades individuais, a partir de um discurso meritocrático incoerente em uma sociedade estruturalmente desigual. O paradoxo é evidente: valoriza-se mais o direito ao início da vida que o próprio direito de estar vivo.
Os discursos e ações que promovem a retirada de direitos reprodutivos demonstram desprezo pela vida das mulheres e um utilitarismo cruel, reduzindo seus corpos a instrumentos de reprodução. Não se preocupam com o empobrecimento e a precarização da vida de pessoas que são forçadas a maternar e precisam buscar sobrevivência em um mercado de trabalho que rejeita a maternidade. Ignoram o fato de que o trabalho fora do lar não é uma escolha, mas uma necessidade para a maioria das brasileiras e que, na busca por emprego, mais de 80% das mulheres são questionadas sobre filhos ou planos de maternidade.
Desprezam o trauma de quem sofre violência sexual e será forçada a carregar para o resto da vida a lembrança da violação e beneficiam estupradores que, além de na maioria dos casos não enfrentarem as consequências dos seus atos, serão premiados com a perpetuação da violência que praticaram contra a vítima.
Tais autoridades dizem ter tanto interesse na proteção das crianças, mas não parecem se comover com o fato de que 61,6% das vítimas de violência sexual são menores de 13 anos e que, se a violência resulta em uma gestação, o aborto é ferramenta essencial para o resgate da infância, da dignidade e da vida de inúmeras meninas. Não raro, os mesmos legisladores que restringem direitos reprodutivos são contrários à promoção de educação sexual, fundamental para prevenir abusos e proteger crianças.
Proteger significa criar espaços seguros onde as crianças possam identificar abusos e buscar ajuda, rompendo ciclos de violência. No entanto, esses debates são tratados como tabu, promovendo o silenciamento das vítimas e a impunidade dos agressores, cultivando uma sociedade que usa a violência como instrumento de controle sobre corpos femininos.
É impossível não se indignar com um sistema que é deliberadamente estruturado para não interferir na privacidade do lar, local onde a maioria das violências sexuais e domésticas acontecem, mas interfere na privacidade do útero, criando o cenário perfeito para a proliferação de mais e mais violência.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.
Ironicamente, o mesmo grupo que propõe incluir o marco inicial da vida nesse artigo ignora os direitos restantes, focando apenas em controlar, vulnerabilizar e aprisionar.
Enquanto o art. 5º dispõe sobre vida, igualdade, liberdade e segurança, o discurso desse grupo dissemina um projeto de opressão de grupos historicamente vulnerabilizados, com o objetivo primário de garantir a perpetuação e ampliação das desigualdades de gênero, raça e classe.