Falta de informação, baixa oferta de serviços e falta de preparo de profissionais de saúde estão entre as dificuldades encontradas por mulheres que buscam o aborto legal
Em março de 2023, Milena, 45, (nome fictício para preservar a identidade da entrevistada) sofreu um estupro e procurou uma Unidade Básica de Saúde (UBS) na zona norte de São Paulo (SP), onde mora. Lá, foi informada que não havia nada a ser feito e que deveria voltar em 15 dias para realizar um teste de gravidez. O teste deu positivo e ela recebeu a falsa informação de que o aborto não era permitido e que deveria iniciar o pré-natal.
Naquele momento lhe foi negado o direito ao aborto legal e gratuito em decorrência de estupro – situação em que não se faz necessária apresentação de boletim de ocorrência (BO) para comprovar a violência.
“Não tive facilidade alguma ao procurar atendimento. Foram todas as barreiras possíveis, desde o pedido de medicação para evitar a contaminação de IST [Infecções Sexualmente Transmissíveis], até a realização do exame com resultado positivo e o encaminhamento para assistência social para marcar consulta pré-natal mesmo sendo fruto de estupro”, relata.
Por se ver obrigada a seguir com a gestação, Milena entrou em depressão e tentou suicídio, até que um dia desabafou sobre sua situação para uma enfermeira do hospital em que trabalhava na época e ela a indicou ao Projeto Vivas, que auxilia meninas e mulheres a acessarem os serviços de aborto legal no Brasil e exterior.
Com a ajuda da organização, ela realizou o aborto com 19 semanas de gestação. Caso o seu direito fosse garantido logo da primeira vez que Milene procurou atendimento na UBS, o procedimento poderia ter sido realizado no início da gestação e o sofrimento que ela viveu ao longo dessa espera seria evitado.
“Nenhum profissional da área me ajudou quando eu mais precisei, quase tirei minha vida, foi muito difícil”, conta Milena, que não recebeu suporte psicológico durante o processo e não se sentiu acolhida pelos profissionais de saúde. Amparo médico, psicológico e social imediatos e profilaxia da gravidez são condutas previstas em lei para procedimentos de interrupção da gestação no serviço público.
Como mulheres buscam informação sobre aborto legal?
Há mais de 80 anos, a legislação brasileira prevê situações em que o aborto é legal no país. No entanto, até hoje mulheres enfrentam uma série de dificuldades quando precisam acessar esse direito. Nessa reportagem, buscamos entender como elas procuram informações sobre o aborto legal e quais barreiras enfrentram para acessá-lo.
A falta de informação sobre o tema é um dos obstáculos mais expressivos. Segundo levantamento de 2022 do portal Gênero e Número, apenas seis das 27 unidades federativas disponibilizam informação pública sobre aborto nos sites das secretarias de Saúde.
Além disso, o relatório Breve Panorama sobre Aborto Legal e Transparência no Brasil, de 2018 da organização Artigo 19, mostrou que 25 estados não publicam lista de serviços ou unidades hospitalares com condições de oferecer suporte ao abortamento legal. Apenas três sites estaduais e um site municipal informam todas as situações em que a interrupção da gestação é legal.
No site da Secretaria de Saúde do Estado de Roraima – estado com maior taxa de fecundidade de meninas de 10 a 14 anos – por exemplo, ao pesquisar a palavra “aborto” aparecem duas matérias: uma sobre treinamento realizado com profissionais de saúde sobre cuidados para reduzir mortalidade materna e fetal e outra sobre gravidez na adolescência. Nenhuma delas informa as situações em que o aborto é legal e nem indica unidades hospitalares que realizem o procedimento.
No Brasil, o aborto é legal em três situações: quando a gestação é decorrente de estupro, quando não há outro meio de salvar a vida da mulher e nos casos de anencefalia. Os dois primeiros casos estão previstos desde 1940, pelo Decreto Lei nº 2.848. Já o aborto legal para casos de anancefalia foi definido em 2012 pelo Supremo Tribunal Federal (STF)
Buscadores da internet e Unidades Básicas de Saúde (UBS) são alguns dos meios usados por mulheres para encontrar informações sobre aborto legal.
“Muitas vezes, quando uma mulher sofre uma violência e engravida, geralmente ela procura pela UBS (Unidade Básica de Saúde) mais próxima. Lá, recebe a informação de que que o aborto não é legal e é encaminhada para o pré-natal”, relata Rebeca Mendes, advogada e fundadora do Projeto Vivas.
Rebeca conta que as mulheres chegam até as redes sociais do projeto por meio de pesquisas sobre aborto legal em buscadores da internet. Ao entrarem em contato por WhatsApp são direcionadas a um formulário que pergunta informações básicas para direcionar melhor a ajuda.
Informar-se sobre o aborto, inclusive, é urgente e necessário para as mulheres. E isso quem diz são os próprios mecanismos de busca na internet. Dados de 2024 apurados pela equipe de reportagem mostram que o Brasil registrou mais de 49 mil pesquisas no Google relacionadas ao termo “aborto”. Já o termo “aborto legal” registra perguntas como “o aborto é legal no Brasil?” e “quando o aborto é legal?”.
Barreiras vão do acesso à informação a falta de preparo dos profissionais de saúde
No ano passado, o Projeto Vivas auxiliou 247 mulheres a realizarem o aborto legal no Brasil. Além disso, recebem diariamente contatos com dúvidas sobre o assunto. Várias mulheres chegam ao projeto relatando uma gravidez indesejada, e quando contam suas histórias, é possível constatar que sofreram violências sexuais, e portanto, tem direito ao aborto. “Uma barreira muito comum nesses casos é o acesso à informação”, afirma.
Segundo o relatório Breve Panorama sobre Aborto Legal e Transparência no Brasil, da organização Artigo 19, além do desconhecimento sobre o direito ao aborto, há outras camadas de desinformação. “Não existe uma lista pública, de fácil acesso e amplamente publicizada dos hospitais públicos e maternidades que de fato oferecem o serviço. Com algumas exceções, é difícil encontrar essas informações através de fontes oficiais”, diz o texto.
Essas barreiras afetam em maior parte mulheres e meninas negras e periféricas. “Quando fazemos o recorte de aborto legal e violência sexual vemos que a maioria estão em vulnerabilidade social e têm baixa escolaridade; quanto mais avançada a gravidez, mais longe dos grandes centros elas estão”, afirma Receba sobre as vítimas que a procuram no Projeto Vivas.
Apenas 3,6% dos municípios brasileiros tem serviços de aborto legal, conforme revela pesquisa de 2022 da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). A baixa oferta obriga mulheres a viajarem para terem acesso a eles. A cada sete pessoas que fizeram um aborto legal entre 2010 e 2019 no país, uma precisou viajar para acessá-lo, de acordo com o estudo “Oferta e realização de interrupção legal de gravidez no Brasil”.
Para a médica de família e comunidade Luiza Cadioli, que atende no Coletivo Feminista – Sexualidade e Saúde, a maior dúvida que mulheres que buscam por esse tipo de serviço é: “será que vou conseguir? Será que esse pesadelo vai acabar?”.
Segundo a médica, a falta de preparo das equipes de saúde é mais um dos entraves ao acesso ao aborto legal. “Ainda hoje, temos profissionais de saúde que não sabem quais são os permissivos legais para o procedimento”, pontua e afirma que questões geográficas, financeiras e o estigma em torno da prática também dificultam o acesso.
Essas e outras questões refletem nas histórias que Rebeca acompanha por meio do Projeto Vivas. Ela conta o caso de uma mulher indígena que sofria violência sexual e descobriu uma gravidez já em estágio avançado. O projeto foi acionado e conseguiu uma viagem para que a vímita fizesse o aborto legal em São Paulo (SP). No entanto, pessoas que conviviam com a mulher passaram a desincentivá-la, dizendo inclusive que ela poderia ser processada.
A pressão foi tão grande, que a mulher desistiu do seu direito. “Ela não viajou, não fez o aborto e morreu no parto, deixando três filhos. Essa história marcou o Projeto Vivas, porque foi a primeira mulher que tivemos contato e teve morte materna, que poderia ser evitada”, diz.
Ofensivas contra o aborto legal
Luíza aponta que os transtornos para acessar o aborto legal levam as vítimas a buscá-lo por meios clandestinos. “Eu atendo muitas mulheres que encaminho para serviços de aborto legal e me chamou atenção o caso de duas pacientes que teriam direito ao aborto recentemente e não quiseram ser encaminhadas por medo da quebra de sigilo e perseguição. As duas haviam sido estupradas e estavam em gestação inicial, (cerca de sete semanas) e preferiram abortar clandestinamente”, relata.
A preocupação delas não é infundada. Em março deste ano, foi aberto inquérito para investigar a Prefeitura de São Paulo por acessar prontuários de pacientes que fizeram aborto legal no Hospital Municipal e Maternidade Vila Nova Cachoeirinha. Foram copiados dados pessoais, que deveriam ser sigilosos, sem autorização dos pacientes nem ordem judicial.
Além disso, há casos de profissionais que realizam aborto legal e também são perseguidos. Neste ano, duas médicas que fizeram procedimentos de aborto legal no Hospital Vila Nova Cachoerinha, na zona norte de São Paulo, foram suspensas pelo Conselho Regional de Medicina (Cremesp). Segundo o Sindicato dos Médicos (Simesp), as profissionais passaram a ser perseguidas depois que dados de pacientes foram acessados pela Secretária Municipal da Saúde.
Multiplicam-se ainda ofensivas que dificultam o acesso ao aborto legal. É o caso de uma lei de Maceió que obrigava mulheres nessas condições a verem a imagem do feto e que foi revogada pela Justiça de Alagoas, em 19 de janeiro.
Em maio deste ano, o STF suspendeu resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que dificultava aborto em gestação decorrente de estupro. A norma proibia o utilização de a técnica da assistolia fetal para a interrupção de gestações acima de 22 semanas decorrentes de estupro.
No fim de 2023, a Prefeitura de São Paulo usou o recurso para encerrar o serviço de aborto legal no Hospital Vila Nova Cachoeirinha, a unidade que mais fazia atendimentos em São Paulo. A Justiça determinou que o serviço voltasse a ser oferecido três vezes, mas a Prefeitura recorreu.
Mais recentemente, entrou em pauta no Congresso Nacional o Projeto de Lei (PL) 1904/24 que equipara o aborto realizado acima de 22 semanas de gestação ao crime de homicídio, mesmo nos casos previstos em lei. Após mobilização da sociedade, o presidente da Câmara dos Deputados Arthur Lira (PP-AL) anunciou que a votação do projeto não ocorrerá neste semestre.
“No geral, é a ausência do Estado que faz meninas chegarem a uma gravidez indesejada em decorrência de um estupro com mais de 22 semanas. É a falta de serviço de aborto legal”, pontua Luiza.
Práticas recomendadas aos profissionais de saúde
Para os profissionais de saúde que atendem mulheres grávidas, Luiza Cadioli explica que a primeira recomendação é verificar se a gestação é indesejada. “Nem toda pessoa que sofreu uma violência sexual e engravidou necessariamente vai querer abortar, mas talvez muitas queiram”, diz.
Caso a paciente demonstre interesse em interromper a gravidez, o próximo passo é encaminhá-la para um serviço de aborto legal. “Nesse serviço não é preciso de encaminhamento via regulação, basta orientar a pessoa a ir até lá, não é necessário esperar uma consulta ser agendada”.
“É de bom tom informar ao serviço de aborto legal a situação, dizer qual a data da ultima menstruação e notificar a violência, nos casos em que houver”, recomenda.
É preciso estar atento ainda aos permissivos legais para a realização do serviço. “Menores de 14 anos, por exemplo, têm direito ao aborto legal pelo simples fato serem menores de 14 anos e se entender uma relação sexual como um estupro presumido; porém, há muitas meninas de 12 e 13 anos fazendo pré-natal e isso nunca foi questionado”, pontua.
Dados do DataSUS, compilados na paltaforma Panorama do aborto no Brasil, revelam que 25 mil meninas de até 14 anos têm filhos no Brasil anualmente. Além disso, de 2015 a 2022, a média de abortos legais registrados no DataSUS foi de 1.800.
A Lei 12.845, de 2013, orienta o atendimento dos profissionais de saúde no serviço público focado na interrupção da gestação dentro dos meios legais. Amparo médico, psicológico e social imediatos e profilaxia da gravidez estão entre as condutas previstas no texto.
Informações gerais sobre o direito ao aborto legal
Segundo boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, há 108 hospitais que realizam o procedimento de aborto previsto por lei em 2023. Na plataforma Mapa do Aborto Legal é possível verificar a localização dos hospitais; com última atualização em 2022, o site lista 73 estabelecimentos.
Vale estar atenta a algumas informações sobre o direito ao aborto legal, apontadas pela plataforma:
– Mulheres vítimas de estupro têm o direito a atendimento gratuito no SUS, que inclui: recebimento de tratamentos contra ISTs, pílula do dia seguinte (contraceptivo de emergência), apoio psicológico e, em casos de gravidez, o direito ao aborto legal;
– Em casos de violência sexual, não é necessária a apresentação de um boletim de ocorrência, exame do IML ou mesmo autorização judicial, sendo a palavra da mulher o suficiente para a realização do aborto legal. A mulher deverá ainda assinar termo de consentimento escrito;
– Quando a continuidade da gravidez apresenta risco de vida à mulher, a equipe médica deve oferecer informações sobre os possíveis danos e riscos para que ela decida ou não pela manutenção da gravidez. Deve ser apresentado um laudo com a opinião de dois médicos;
– Não é necessária a apresentação de autorização judicial para casos de interrupção da gravidez por anencefalia. Para dar entrada no SUS, as mulheres precisam apresentar um exame que comprove a má formação (ultrassonografia) e laudo assinado por dois médicos;
– Os profissionais de saúde podem declarar objeção de consciência e se recusar a realizar algum procedimento caso isso vá contra seus valores, mas são obrigados a realizar o procedimento se não houver outro profissional no serviço que possa realizar o atendimento ou ainda nos casos em que a vida da mulher esteja em risco.