Por que o Papa não mudou nada sobre aborto na Igreja Católica, por Tabata Pastore Tesser

24 de abril, 2025 Portal Catarinas Por Tabata Pastore Tesser

De João Paulo II a Bento XVI, e de forma contínua com Francisco, a doutrina antiaborto consolidou-se como um pilar inegociável da Igreja Católica.

A morte de Francisco encerrou um dos papados mais marcantes da história recente da Igreja Católica. Embora tenha adotado uma proposta teológica dialógica e seja considerado por críticos e admiradores como progressista por sua crítica ao capitalismo e por promover uma economia do bem comum, Francisco não rompeu com a tradição antiaborto da Igreja.

Nesse ponto, é equivocado classificá-lo como progressista, uma vez que a descriminalização do aborto integra a agenda feminista e a Igreja Católica sustenta um posicionamento hierárquico antiaborto consolidado, ancorado em uma longa construção teológica, moral e institucional. Obviamente, existem vozes católicas dissidentes.

Seria fácil, e talvez reducionista, afirmar que a condenação ao aborto por parte da Igreja Católica seria por ‘controle patriarcal sobre os corpos’. Em parte, isso é verdade e relevante, mas não explica por completo a dinâmica complexa da pauta para o catolicismo.

A pauta do aborto atravessa fronteiras econômicas, filantrópicas, jurídicas e religiosas: está ausente em discursos de líderes sindicais de esquerda e, paradoxalmente, presente em movimentos de feminismo “pró-vida”, que integram o que Mayra Goulart e Alessandra Maia definem como formas de ecumenismo civil nos feminismos da religião (2023).

De João Paulo II a Bento XVI, e de forma contínua com Francisco, a doutrina antiaborto consolidou-se como um pilar inegociável da Igreja Católica. Ainda que tenha evitado o tom militante de João Paulo II, Francisco realizou dezenas de declarações formais contra o aborto, equilibrando rigidez doutrinária com acolhimento pastoral, mas evocando estigmas sobre quem aborta. Em diversos momentos de seu pontificado em entrevistas, cartas, encíclicas e até telefonemas, o papa reiterou que “abortar é matar quem não pode se defender”, classificando o aborto como “crime”, “mal absoluto”, e comparando-o a ações mafiosas ou à contratação de um sicário.

Apesar disso, Francisco reconheceu o “sofrimento” das mulheres e ampliou o direito à absolvição das que praticam nos confessionários, antes restrito a bispos. No entanto, esse gesto não foi suficiente para desestigmatizar a prática do aborto e de quem aborta. Afinal, pedir perdão pressupõe culpa, e muitas pessoas abortam não por desvio moral, mas como exercício consciente de liberdade. Ao decidirem por si, recorrem ao princípio da consciência, um valor fundamental do próprio catolicismo, e o fazem com dignidade e boa vontade.

A história doutrinária da Igreja demonstra que a condenação ao aborto não é recente. Entre 1588 e 2020, a posição institucional evoluiu em punições, justificativas morais e estratégias discursivas. Desde a excomunhão automática prevista no Código de Direito Canônico até as metáforas mais duras como o “nazismo de luvas brancas”, expressão usada por Francisco em resposta à legalização do aborto na Argentina em 2018, o Vaticano se manteve inflexível, mesmo diante de transformações sociais, avanços científicos e mobilizações feministas.

A teologia moral católica está alicerçada em estruturas declaradamente antifeministas como a Doutrina da Complementariedade e a Teologia do Corpo, que vinculam a identidade da mulher à maternidade, reforçando papéis de gênero fixos e negando o direito à autonomia reprodutiva.

Essa arquitetura doutrinária é sustentada por documentos como o Lexicon (2003), um manual de combate aos direitos sexuais e direitos reprodutivos, e por reações políticas expressas pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) que, como pude presenciar, durante a Jornada Mundial da Juventude de 2013, distribuiu materiais, como a cartilha Manual de Bioética para Jovens com argumentos anticientíficos e desinformantes sobre aborto.

A linguagem bioética do catolicismo orienta diretrizes normativas e práticas sobre saúde, objeção de consciência e planejamento familiar, com base em documentos como a Evangelium Vitae (1995), as Diretrizes Éticas e Religiosas para os Serviços de Saúde Católicos além de sustentar as declarações da Pontifícia Academia para a Vida.

A disputa sobre o aborto revela, assim, não apenas um embate moral, mas também político, jurídico e teológico.

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