(ConJur, 16/05/2015) O título é provocativo e remete ao tormentoso caso de Kevin, retratado no romance de Lionel Shriver e levado ao cinema pelas lentes da escocesa Lynne Ramsay, em que um garoto norte-americano, detentor de um comportamento antissocial e agressivo, projeta e executa um assassinato em massa no subúrbio em que morava, atingindo familiares, estudantes e professores de sua escola.
A tragédia, há muito anunciada pelos traços psicóticos do adolescente, remete a uma importante questão transcendente: a corrosão do tecido social encontra-se quase sempre jungida à falta de comunicação e senso de responsabilidade. É preciso, portanto, dialogar antes que seja tarde demais.
Transportando esta relação cambiante falta de diálogo x tragédia anunciada para a realidade das maternidades públicas e privadas brasileiras, já é tempo de discutirmos a questão da violência obstétrica e os danosos efeitos causados por sua prática indiscriminada às parturientes, especialmente em uma perspectiva jurídica de garantia de direitos da mulher.
Contrariando a discriminação institucionalizada no sistema jurídico brasileiro desde a primeira das Cartas Políticas, a Constituição Democrática de 1988 foi expressa ao conferir igualdade de direitos fundamentais a homens e mulheres (artigo 5º, inc. I), dispondo, ainda, sobre o combate à violência de gênero, conforme exara o artigo 226, parágrafo 8º: “O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”.
Ao prever referido comando normativo, a Constituição Federal impôs ao Estado Brasileiro um dever prestacional de duas dimensões: ao mesmo tempo em que o obriga a criar, organizar e implantar meios preventivos de coibir a violência (proteção lato sensu), confere-lhe o dever de evitar práticas concretas de violência de gênero, tornando as hipóteses de violação aos direitos femininos passíveis de judiciabilidade (proteção strictu sensu).
No plano supralegal, a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência Contra a Mulher (CEDAW) trouxe normatização expressa a respeito do combate à discriminação da mulher no campo da saúde, dispondo, em seu artigo 12.2: “[…] os Estados-Partes garantirão à mulher assistência apropriada em relação à gravidez, ao parto e ao período posterior ao parto, proporcionando assistência gratuita quando assim for necessário, e lhe assegurarão uma nutrição adequada durante a gravidez e a lactância”.
A seu turno, a definição de violência contra a mulher foi ampliada a partir da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção Belém do Pará), que, em seu artigo 1º, caput, a conceitua como “qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada”. Em reforço, o artigo 2º da Convenção vem esclarecer quais as ambiências em que presente a violência de gênero, assentando a possibilidade desta ocorrer não apenas no ambiente doméstico, intrafamiliar ou interpessoal (alínea a), mas também no ambiente comunitário, laboral, educacional ou de saúde (alínea b), sem prejuízo da violência perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes (alínea c).
No que concerne à legislação interna, embora a Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha) tenha aparentemente restringido a incidência da legislação ao ambiente doméstico, intrafamiliar ou decorrente de relação íntima de afeto (artigo 5º), a melhor exegese é aquela que entende tratar-se este rol denumerus apertus (exemplificativo), quer em virtude da proteção lançada pelos estatutos supralegais antes indicados, quer em razão da aplicação do princípio pro homine (artigo 5.2, Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos), à luz da fundamentalidade material das normas protetivas de direitos humanos.
Partindo destas premissas normativas, parece óbvio que a violência institucionalizada contra a mulher, em especial, a violência institucional na atenção obstétrica, ou, simplesmente, violência obstétrica, também deve ser combatida pelo Poder Público, sob pena de inadmitida omissão estatal.
Mas, afinal, o que é violência obstétrica? De uma maneira ampla, sem a menor pretensão de esgotar o tema, é possível afirmar que a violência na atenção obstétrica corresponde a qualquer ação ou omissão, culposa ou dolosa, praticada por profissionais da saúde, durante as fases pré-natal, parto, puerpério e pós-natal, ou, ainda, em casos de procedimentos abortivos autorizados, que, violando o direito à assistência médica da mulher, implique em abuso, maus-tratos ou desrespeito à autonomia feminina sobre o próprio corpo ou à liberdade de escolha acerca do processo reprodutivo que entender adequado.
De uma forma simplificada, portanto, a violência obstétrica se caracteriza por qualquer intervenção institucional indevida, não informada ou abusiva, que incida sobre o corpo ou sobre o processo reprodutivo da mulher, violando sua autonomia, privacidade, informação, liberdade de escolha ou participação nas decisões tomadas.
No Brasil, os números relacionados à violência obstétrica são assustadores. Segundo recomendação contida no Relatório Maternidade Segura e Assistência ao parto Normal: um guia prático, publicado em 1996 pela Organização Mundial de Saúde, as maternidades devem obedecer um limite máximo de 15%, em matéria de procedimentos cesarianos. Na contramão destes números, segundo dados da Pesquisa Nascer no Brasil – Inquérito Nacional sobre Parto e Nascimento, o Brasil é o líder mundial no número de nascimentos via cesárea (cerca de 52% dos partos nacionais registrados), sendo que, no setor privado de saúde, essa porcentagem chega ao incrível número de 88%.
Em recente pesquisa divulgada na Revista Unesp Ciência, estima-se que cerca de um milhão de mulheres sejam anualmente submetidas a procedimentos cesarianos, sem indicação obstétrica adequada. Destas mulheres, aproximadamente 70% indicavam preferência pelo parto natural no início da gestação, mas desistiram de sua opção por falta de incentivo da rede de saúde. Ainda, segundo a pesquisa, mesmo em casos de gestações classificadas como de baixo risco para o parto natural, apenas 5,6% das mulheres assistiram ao nascimento de seus filhos sem qualquer intervenção institucionalizada.
Associado a estes trágicos números, o Sistema de Saúde brasileiro ainda adota diversos procedimentos e técnicas consideradas ultrapassadas pela OMS, incorrendo em graves exemplos configuradores de violência obstétrica. Neste sentido, é possível citar: i) o uso da ocitocina sintética para aceleração do trabalho de parto; ii) a prática indiscriminada da episiotomia (corte no períneo para facilitar a passagem do neonato); iii) a prática da manobra de kristeller (pressão sobre a barriga da gestante para empurrar o bebê no momento do parto); iv) o uso da tricotomia (retirada dos pelos pubianos); v) a prática de enema (lavagem intestinal); vi) a realização rotineira de exame de toque para verificação da dilatação; dentre outros procedimentos abusivos.
Não bastasse, às gestantes são cotidianamente negados na rede pública e privada de saúde os seguintes direitos básicos: a) direito à liberdade de escolha entre o parto natural e o parto cesariano; b) direito à informação sobre o procedimento médico, riscos e consequência de sua gestação; c) o direito à privacidade no parto e à confidencialidade das informações; d) o direito ao procedimento anestésico adequado, incluindo métodos não farmacológicos de alívio da dor; e) o direito ao planejamento reprodutivo e familiar; f) o direito à participação e à corresponsabilidade pela tomada de decisões; g) o direito ao atendimento respeitoso e não vexatório (são comuns as reclamações de parturientes relatando a prática de ofensas, humilhações e insultos durante o parto natural, bem como a realização de intervenções não consentidas, como a prática de amarras durante o nascimento).
Assiste-se, ainda, a outra violação cotidiana em nossas maternidades: a obstaculização do direito ao acompanhante durante o trabalho de parto, parto e pós-parto. O direito ao acompanhante — expressamente incluído pela Lei 11.108/2005 no artigo 19-J da Lei 8.080/1990, que, por força da Lei nº 12.895/2013, deve ser mantida em local visível ao público em todas as maternidades brasileiras — embora corresponda a um dos principais instrumentos que as gestantes possuem contra a violência na atenção obstétrica (já que possibilita o testemunho do parto), vem sendo corriqueiramente violado nos nosocômios pátrios, impedindo não só a sensação de acolhimento da mulher durante o trabalho de parto, como também o direito à participação familiar durante o nascimento.
O mais curioso é que tudo isso ocorre à revelia de diretrizes e normatizações estabelecidas pelo próprio Ministério da Saúde e pela ANVISA, que, desde meados dos anos 2000, orienta suas ações pela “Humanização do Parto”, consoante os seguintes compromissos assumidos: a) Pacto Nacional pela Redução da Mortalidade Materna e Neonatal (Ministério da Saúde, 2004); b) Programa de Humanização do Parto e Nascimento (Ministério da Saúde, Portaria 569/00); c) Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão da Saúde (Ministério da Saúde, 2003); d) RDC 36/2008 e Instrução Normativa 02/2008 – ANVISA (que regulamentam os serviços de atenção obstétrica e neonatal e impõe a adoção de medidas que incentivem o parto humanizado e a redução dos índices de mortalidade materna e neonatal no país).
Mesmo diante desta situação calamitosa, ainda é ínfima a porcentagem de violações obstétricas que chegam, efetivamente, ao Poder Judiciário, fato que revela a absurda ausência de políticas públicas orientadas à prevenção da violência obstétrica, bem como o baixo conhecimento técnico-científico dos órgãos internos e externos de fiscalização do Sistema de Saúde, inclusive das instituições que exercem a denominada função essencial à Justiça.
O despreparo é tamanho que, em recente caso paradigmático, ocorrido na cidade de Torres/RS, a gestante Adelir Carmen Lemos foi forçada pela Justiça gaúcha a submeter-se a procedimento cesariano, mesmo contra o seu consentimento, sob o pretexto de pretenso risco médico, prognóstico posteriormente contestado por especialistas e estudiosos do tema.
Contra este estado d’arte, relevante salientar a precursora atuação da Defensoria Pública paulista, em especial do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher (NUDEM), que vem ajuizando demandas indenizatórias por violações aos direitos das parturientes na atenção obstétrica. Elogiável, ainda, a iniciativa do Ministério Público, que, em parceria ao NUDEM, à Associação Artemis e à Secretaria de Políticas Públicas para Mulheres, levou o tema à audiência pública, realizada no dia 17 de novembro de 2014 em São Paulo.
Mas é possível fazer mais. É preciso que a violência obstétrica seja identificada, discutida, trabalhada, prevenida e combatida pelos órgãos oficiais de controle, sob pena de atuações como estas continuarem a consubstanciar pequenas ilhas de proteção em meio a um vasto oceano de violações aos direitos das parturientes.
É preciso reeducar a visão pública sobre o parto, substituindo os discursos de hospitalização do processo reprodutivo pelos discursos de humanização da assistência obstétrica.
De uma vez por todas, é necessário compreender que o nascimento não consubstancia uma patologia, mas um acontecimento natural, de composição fisiológica, inserido em um contexto histórico, familiar e sociocultural, que liga-se umbilicalmente ao direito à vida, à integridade física, à sexualidade, à reprodução e à dignidade da mulher gestante, de sua família e do neonato. Tratar o parto como uma doença é velejar na direção contrária aos rumos apontados pela doutrina humanizada.
É preciso, ainda, investir em Centros de Parto Natural, de preferência próximo às maternidades hospitalares (facilitando o acesso em casos de complicações ou risco), cuja proposta obstétrica de recepção, acolhimento e respeito aos direitos da gestante se distancie do que ordinariamente acontece em um atendimento médico voltado ao tratamento patológico.
É preciso, ademais, resgatar o protagonismo e a corresponsabilidade da mulher durante o parto, conferindo a ela as informações necessárias para que efetivamente exerça o seu direito de escolha entre o parto natural e o parto cesariano. Tal escolha deve, acima de tudo, ser respeitada pelos profissionais da saúde, admitindo superação apenas em caso de risco concreto, previamente identificado e fundamentado pelo médico responsável, após discussão com a gestante.
Também é preciso combater as práticas médicas abusivas e ultrapassadas, como o uso da ocitocina e da episiotomia, erguendo uma barreira intransponível de direitos das parturientes contra uma cultura sanitária arcaica, autoritária e corporativa, que caminha à margem da racionalidade científica.
É preciso, outrossim, fazer valer o direito ao acompanhante, com atenção especial para o primeiro parto da gestante, período de transição na identidade e no curso vital feminino, em que a falta de experiência pode levar a maior sensação de insegurança. Da mesma forma, o acompanhamento paterno pode contribuir favoravelmente à construção de sólidos laços familiares, valorizando o renivelamento da relação entre os gêneros, em detrimento de papeis conjugais estereotipados e rituais simbólicos (como o convite ao corte do cordão umbilical), que pouco contribuem à construção da igualdade familiar.
Estas consubstanciam apenas algumas das inúmeras formas de combate à violência obstétrica. Como nas mensagens epistolares escritas pela mãe de Kevin no best-seller indicado em notas introdutórias, em que uma reflexão envolvendo falta de comunicação e responsabilidades é instaurada, o presente texto visa convocar a comunidade jurídica para o debate sobre à violência obstétrica, sob uma ótica protetiva de direitos. A fim de que maiores tragédias sejam evitadas… precisamos falar sobre a violência obstétrica!
Acesse no site de origem: Precisamos falar sobre a violência obstétrica, por Júlio Camargo de Azevedo (ConJur, 16/05/2015)