Os tempos não são mais os de Cazuza, mas a imagem que cerca a convivência com o HIV ainda é a do cantor. Se o tratamento atualmente já é eficiente para garantir a qualidade de vida da pessoa infectada, quem vive com a doença diz que a maior dificuldade encarada mesmo é o preconceito.
(UOL, 01/12/2017 – acesse no site de origem)
E se viver com HIV já traz muitos estigmas, para as mulheres eles ainda se somam ao machismo. “Ser mulher já é complicado, né? Em um país machista, ser mulher com HIV complica ainda mais. Porque as pessoas ainda têm a visão do HIV ligado à promiscuidade”, diz Heliana Moura, secretária política do Movimento das Cidadãs Posithivas.
Ela, que trabalha com prevenção, conta também que o machismo aumenta os riscos do contágio. “Elas questionam: o que ele vai pensar se eu pedir para usar camisinha?”, explica, mencionando que sempre cabe à mulher a tarefa de ‘negociar’ o uso do preservativo nas relações.
Atualmente, elas são 51% das pessoas vivendo com o vírus no mundo. E, entre riscos, preconceitos e dificuldades para ter uma vida sexual plena, mulheres que vivem com o HIV contaram ao UOL um pouco de suas histórias e das peculiaridades de ser mulher soropositiva.
A vizinha saía da piscina quando eu entrava
“Sou conhecida como a HIVó, e fui uma das fundadoras do Movimento Nacional das Cidadãs Posithivas. Meu diagnóstico veio em 1997 e não foi fácil. Tive um casamento de 30 anos e, quando ele acabou, conheci meu segundo marido, que faleceu de cirrose, em 1992. Por causa da doença, ele fazia muitas transfusões de sangue e em uma delas se infectou com o HIV. Mas isso, eu só fui saber anos mais tarde. Quatro anos depois da sua morte, reencontrei um antigo amigo e nos apaixonamos. Estava tudo bem, quando comecei a ter problemas de pele. Passei por vários médicos, sem diagnóstico. Pesquisavam coisas como câncer de pele, leucemia, mas nunca HIV, afinal, eu era uma mulher respeitável, como teria isso?
Finalmente fui a um dermatologista que já trabalha com pessoas soropositivas e me pediu um teste. Eu ri muito e ele me respondeu: ‘a senhora também pensa que HIV tem alguma coisa a ver com conduta moral?’. Foi a primeira vez que alguém me falou sobre a inexistência dos tão falados grupos de riscos. Fiz o teste e o resultado veio positivo. Eu provavelmente peguei pelo sexo desprotegido com meu antigo marido.
Meu mundo veio abaixo e foi um imenso aprendizado até entender que nada mudou e continuo sendo quem eu sou. Como na época o imaginário coletivo restringia as mulheres com HIV a profissionais do sexo e usuárias de droga, minha aceitação não foi fácil. Por sorte, meu marido não se infectou e não me deixou. E me fez um pedido: não te esconde. Assim, foi ao lado dele que comecei um trabalho de conscientização, para mostrar ao mundo que mulheres com parceiro fixo também são ‘grupo de risco’.
Faço meu tratamento corretamente e mostro ao mundo que sou uma mulher exatamente igual a qualquer outra da minha idade. Mas situações de preconceito acontecem.
Por exemplo, no edifício onde morava, passei a receber bilhetes anônimos com textos como “Sai, aidética”. Tinha um vizinho que não entrava no elevador se eu estivesse e uma senhora que, quando eu chegava à piscina, recolhia os filhos e saía da água. São situações que hoje me fazem rir, mas foram muito desagradáveis.
Ainda existe muito preconceito, mas a informação é a grande solução! E o que eu mais faço é informar, trocar ideias e bater papos sobre o assunto! Hoje em dia, estamos rodeados de pessoas vivendo com HIV, mas no imaginário coletivo ainda somos iguais ao Cazuza. Enquanto as pessoas com HIV continuarem se escondendo, estaremos assumindo a marginalidade que a sociedade quer nos impor”. Bia Pacheco, 69, aposentada
“Por não me aceitar, parei o tratamento e quase morri”
“Quando eu tinha cinco anos, minha mãe faleceu, e aos sete, foi meu pai. Na mesma época, fui internada com uma doença na cabeça e recebi o diagnóstico de que tinha HIV, transmitido a mim pelos meus pais.
De criança, eu não sabia do vírus. Tomava remédios porque minha vó mandava. Mas o preconceito vinha de todos os lados. Na escola, a professora chegou a orientar as outras crianças a não brincar comigo, e chegaram a pichar o passeio da minha casa, dizendo “aqui vive uma pessoa com HIV”.
As relações com homens também foram difíceis. Lembro do meu primeiro namorado, quando estávamos prestes a transar, eu decidi contar sobre minha condição e ele escolheu terminar. Foi muito difícil. Tolerei esse tipo de coisa a adolescência toda, mas aos 22 anos decidi me mudar para Belo Horizonte para fugir do preconceito. Mas o maior preconceito que existia estava dentro de mim.
Eu me achava suja, não tolerava viver com o vírus, então comecei um movimento de autoagressão: parei de tomar os remédios antirretrovirais. Como resultado, minha saúde começou a deteriorar e dei espaço para surgirem as doenças oportunistas.
Fui para o hospital muitas vezes e uma das piores foi em 2014, quando tive uma neurotoxoplasmose e quase morri. Passei 21 dias internada e mais dois meses de licença. A doença deixou sequelas, perdi o movimento do lado esquerdo do rosto e a visão do olho direito, minha mão às vezes repuxa e preciso tomar 23 comprimidos por dia para manter a doença controlada.
Mesmo depois disso, continuei com o sentimento de rebeldia e minha saúde oscilou muito. Foi apenas esse ano que comecei a mudar minha atitude. Tive a oportunidade de conhecer um grupo de pessoas vivendo com HIV e começar terapia psicológica.
Assim comecei a entender que eu me considerava indigna, ao mesmo tempo em que direcionava minha raiva para meus pais e para mim. Eu me dava o direito de sentir ódio e isso acabava me fazendo mal.
Conhecendo outras pessoas que vivem bem com o HIV, pude entender melhor minha condição e também mudar a forma como enxergo tudo. Por exemplo, entendi que era mais fácil culpar meus pais ao invés de aceitar o vírus. Hoje, entendo que minha mãe não teve culpa: ela era uma adolescente espancada pelo pai, que foi forçada por uma tia a se prostituir e nunca teve escolha. Meu pai também teve uma vida difícil e nunca saberei como eles contraíram o vírus.
Quando comecei a falar mais sobre isso e aceitar melhor minha condição, mudei de atitude. Hoje tomo o remédio direito e, há três meses, estou com a carga viral indetectável.” Renata*, 29, contadora
Sinto que minha sexualidade me é negada
“Estava casada havia sete anos quando meu marido começou a ficar doente. Passamos por vários médicos, ele piorando sempre, mas ninguém pedia exame de HIV. Altão, advogado, professor universitário, branco… Foram dois anos até ele ter o diagnóstico e quando descobriu, já era tarde. Ele viveu apenas quatro meses.
Claro que eu fui fazer o exame então, já sabendo o resultado. O grande choque tinha sido com o exame dele, quando saiu o meu positivo, o foco era todo na luta pela vida dele. O impacto mesmo veio depois de sua morte, em 2006.
Meu medo começou: será que isso vai acontecer comigo? Vou morrer? Não posso pegar doença. Fiquei muito assustada e com medo de absolutamente tudo. Precisei de muita ajuda de médicos e muito esclarecimento para entender que eu viveria, que não sou radiativa e que o HIV não é doença, apenas uma condição.
Acabei me casando de novo e me separando. Por anos, achei que estava imune ao preconceito, até ficar solteira de novo. Desde que me separei, não consigo mais me relacionar. Quando eu abro que sou soropositiva para os homens, a conversa acaba. Alguns perguntam: ‘você transou com muita gente? Já usou droga?’.
Hoje, sinto que tenho minha sexualidade negada e minha luta é para que as pessoas entendam que, estando com a carga viral zerada, eu não transmito o vírus”. Áurea Carolina More, 42, professora e criadora da página Mulheres Vivendo com HIV
O médico me rotulou de promíscua
“Convivo com o HIV há quase 20 anos. Lá atrás tive uma relação com um rapaz, a gente transou sem camisinha, ele tinha HIV e eu me infectei sem saber. Só quando espalhou um boato de que ele tinha AIDS que decidi fazer o teste.
Fui ao posto, falei com o médico e ele me orientou a fazer o exame em um laboratório particular. No pedido, escreveu: ‘teste de HIV, motivo: promiscuidade’. Antes mesmo de saber, fui rotulada por um profissional de saúde.
Logo as pessoas começaram a falar de mim e decidi me mudar de Belo Horizonte para Brasília. Comecei o tratamento e, com psicólogo, fui elaborando o processo. Fiquei mais tranquila e decidi aprender a viver com isso. Voltei a trabalhar e a me relacionar, encarando o medo de não ser mais aceita ou ser rejeitada.
Pouco depois, estava com um cara e a camisinha estourou. Ele não se infectou, mas eu engravidei. No hospital, tive de ouvir do médico que eu era irresponsável. Mais uma vez julgada por um profissional de saúde, decidi buscar outro hospital.
Consegui um atendimento humanizado, focado no meu bem-estar e do meu filho. Tomei todos os cuidados para não o infectar e consegui. Hoje ele tem 18 anos e eu convivo muito bem com o HIV. Trabalho na entrega de exames de diagnóstico para soropositivos e sempre conto da minha condição, para ajudar a encarar o estigma”. Heliana Moura, 48, assistente social e secretária política do Movimento das Cidadãs Posithivas.
*A pedido da entrevistada, sua identidade foi preservada
Helena Bertho