Presas relatam aborto após hemorragia, tortura contra bebês, sede e fome em presídios

20 de fevereiro, 2018

Relatório do Ministério dos Direitos Humanos revela casos estarrecedores de maus tratos a gestantes e lactantes

(O Globo, 20/02/2018 – acesse no site de origem)

A ação que pode beneficiar 4.560 mulheres presas gestantes, lactantes ou que tenham filhos de até 12 anos, prevista para ser julgada na Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), nesta terça-feira, revela casos que violam a dignidade humana das detentas. Documento do Ministério dos Direitos Humanos anexado ao processo que será analisado pelos ministros apresenta “casos individuais com fortes indícios de tortura contra mulheres e adolescentes gestantes e com filhos nas unidades de privação de liberdade do país”.

O primeiro caso narrado é de uma mulher que estava grávida de dois meses quando chegou à unidade. Ela sangrou por sete dias, desde o primeiro dia que chegou ao local. Além de não ter sido socorrida, a mulher dormiu no chão por vários dias. Não havia água potável na cela. Quando o sangramento terminou, a presa relatou mau cheiro, que foi confirmado por outra interna. Ela descobriu depois de alguns dias que tinha sofrido um aborto.

O outro caso foi de uma adolescente que estava grávida há três meses e já tinha um filho de quatro meses, que era cuidado pela mãe dela. Quando foi apreendida, passou quatro dias na delegacia em cela masculina, com homens adultos. Depois, foi transferida para a unidade socioeducativa, onde passou seis dias isolada na cela de “reflexão”.

A equipe do ministério narra que, quando chegou ao local, observou que a adolescente estava muito abatida. Apesar de não ter sido examinada por um médico, davam-lhe medicamentos para dormir. Também foi relatada a falta de água potável no local. Para finalizar, o relatório informou que “as refeições eram de péssima qualidade e muitas vezes vinham com alimentos azedos. Todas as adolescentes relataram muita fome. A adolescente gestante não tinha direito a refeição diferenciada”.

Na unidade, a equipe do ministério também constatou que “todas as adolescentes, inclusive as menstruadas e gestantes, passavam por revistas vexatórias que consistiam em desnudamento e agachamento” de duas a seis vezes por dia.

Em outro caso observado, uma presa foi levada à delegacia com gestação avançada, “onde sofreu tortura que consistia em golpes, ameaças e procedimento de molhá-la com mangueira na cela, durante a noite”. Depois dos episódios, a grávida teve pneumonia.

O relatório também traz informação de que, durante o trabalho de parto, as mulheres de uma unidade são algemadas “desde a saída da cela até o hospital”. E que, logo depois do parto, são novamente algemadas. Há ainda três casos de mulheres que pariram nas celas, por conta da demora para as escoltas chegarem.

BEBÊ CAIU DE TRILICHE

Em outro relato, uma agente penitenciária disse que já socorreu um bebê recém-nascido sufocado com o leite. A criança foi passada pela grade da cela para ser socorrida. Em outra situação, um bebê de dois meses caiu da cama da mãe, no terceiro andar do triliche, e foi parar em uma bacia onde tinha um aquecedor de água ligado. O bebê levou choque e se queimou.

Em outro estabelecimento prisional que abriga mulheres com crianças de colo, as mães costumam reclamar que o uso do spray de pimenta em uma ala vizinha costuma deixar os olhos dos bebês vermelhos com frequência. Em um caso específico, “policiais militares teriam jogado tanto spray de pimenta na unidade, que uma das crianças teve que ser removida com urgência para o hospital, configurando ato de tortura contra um recém-nascido”.

No mês passado, levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) revelou que havia 622 mulheres presas no Brasil que estavam grávidas ou amamentavam. Eram 373 gestantes e 249 lactantes, segundo dados extraídos de um cadastro nacional ao fim de 2017. São Paulo tinha o maior número de gestantes ou lactantes presas: 235 mulheres. Depois vinha Minas Gerais, com 56 presas, e Rio de Janeiro, com 38.

Dados mais recentes do Ministério da Justiça estimam 44.700 mulheres presas no país em 2016. Por esse parâmetro, a quantidade de grávidas e que amamentam seria de pouco mais de 1%.

Essas duas condições foram incluídas por lei, em 2016, no rol de critérios para possível concessão de prisão domiciliar. O pedido no Supremo foi feito após o benefício ter sido obtido pela ex-primeira-dama do Rio de Janeiro Adriana Ancelmo, em março do ano passado.

Segundo o Ministério da Justiça, havia 44.721 mulheres detidas em 2016 no Brasil, das quais 80% com filhos, e 43% presas preventivamente, sem condenação que justifique o cumprimento da pena. Dos 1.422 estabelecimentos prisionais no Brasil, apenas 107 são destinados exclusivamente para as mulheres e outros 244 têm uso misto. Ou seja, 69% das unidades que abrigam mulheres no país funcionam em alas, pavilhões ou blocos de presídios masculinos.

Ainda assim, o Ministério Público Federal é contra a concessão do habeas corpus coletivo. “Não se desconhece as condições carcerárias em que tais mulheres precisam se submeter. No entanto, o habeas corpus não pode ser utilizado como política pública prisional, nem para garantir ‘direitos individuais homogêneos’ ou ‘direitos difusos'”, argumentou o MPF, afirmando ainda que a conversão da prisão preventiva em domiciliar no caso de gestantes e mães não é um benefício automático.

Foram feitas visitas a 83 unidades de privação de liberdade do país de 17 estados brasileiros. Dentre os estabelecimentos, estão presídios, centros socioeducativos e unidades de saúde mental.

Carolina Brígido

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