(Folha de S. Paulo, 27/10/2015) Marta tinha 17 anos quando foi estuprada por dois homens em um terreno baldio. Era Dia das Mães de 2004. Não teve coragem de contar para a família e muito menos registrar boletim de ocorrência. Entrou em depressão, saiu do emprego, não falava com ninguém. Só reagiu um mês depois, quando se viu grávida. Na delegacia, ainda teve que aguentar chacotas de policiais insinuando que ela poderia estar mentindo sobre o estupro só para fazer o aborto. A gravidez foi interrompida alguns dias depois no Hospital Pérola Byington.
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Agora, um projeto de lei de deputado Eduardo Cunha (PMDB/RJ), patrocinado pela bancada religiosa da Câmara dos Deputados e aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, quer tornar ainda mais traumática a vida de mulheres como Marta. Quer dificultar esse atendimento médico e alterar os direitos já garantidos às vítimas de estupro.
Entre outras coisas absurdas, o PL de Cunha diz que só serão consideradas vítimas de violência sexual aquelas que puderem comprovar a agressão por meio de exame de corpo de delito, realizado pelo Instituto Médico Legal, depois de terem registrado queixa na polícia.
Também só considera violência sexual os casos que resultem em danos físicos e psicológicos. Hoje, a lei brasileira considera violência sexual qualquer forma de atividade sexual não consentida. O Código Penal é claro: a palavra da mulher estuprada basta e deve ser recebida pelo serviço de saúde como presunção de veracidade.
Com esse projeto de lei, Cunha e outros “nobres” deputados estão dizendo: não, mulheres, nós não acreditamos em vocês. Ou vocês me apareçam com a vagina ferida ou então nada feito.
Inúmeros estudos e histórias já demonstraram que a vergonha muitas vezes impede a mulher de revelar a violência praticada contra ela. Só quando engravidam é que costumam procurar assistência médica. Sem contar o fato de que, felizmente, nem todo ato de violência sexual deixa danos físicos aparentes.
Marta e outras 935 mulheres participaram de um estudo no Pérola que deixou evidente o quanto as mulheres retardam em buscar ajuda médica após um estupro: 88,9% delas engravidaram por falta de um atendimento médico imediato após a violência sexual. A anticoncepção de emergência, se usada até 72 horas após a relação sexual, pode evitar a gravidez.
Desse total, 65% optaram pelo aborto. O restante não fez o procedimento porque não houve aprovação para o aborto ou porque a mulher desistiu de interromper a gravidez. A maioria dos casos de não aprovação (39%) do aborto ocorreu pela idade gestacional estar acima da prevista pelo serviço de saúde (após a 22ª semana ou com o feto pesando mais de 400 gramas).
O PL de Cunha também quer dificultar o acesso à pílula do dia seguinte no SUS, apesar de isso não estar escrito com todas as letras. O texto diz que a mulher só poderá receber medicamentos que não sejam abortivos. Mas não define o que é abortivo. Então, ficará a critério do médico julgar se a pílula do dia seguinte, por exemplo, é abortiva ou não. Se ele achar que é, a mulher não poderá receber. Como já foi demonstrado em inúmeros estudos científicos, a pílula do dia seguinte não é abortiva, mas ainda existem profissionais da saúde que, guiados por dogmas religiosos e ignorância, pensam o contrário.
Pelo projeto, os serviços de saúde também não seriam mais obrigados a informar a vítima sobre os seus direitos, entre outros, ao do aborto legal.
O argumento dos parlamentares? “Refrear a prática do aborto, que vem sendo perpetrado sob os auspícios de artimanhas jurídicas, em desrespeito da vontade amplamente majoritária do povo brasileiro”.
Não quero acreditar que você, leitor ou leitora, deseje, nem nos seus piores pesadelos, que sua filha, neta, irmã, ou qualquer mulher da sua família seja obrigada a gestar o fruto de um estupro.
O projeto de lei de Cunha é uma ameaça ao direito ao aborto legal. Um direito, aliás, garantido desde a década de 1940. Mulheres, isso tem a ver com todas nós, com todas que conseguem, por um instante que seja, se colocar no lugar de uma vítima de estupro. Então, tomem uma atitude. Se oponham, abram a boca. Na próxima sexta (30), no vão livre do Masp, a partir das 18h, é o momento de dizer não a esse saco de maldades.
Acesse o PDF: Projeto de Cunha é uma ameaça ao aborto legal, por Cláudia Collucci (Folha de S. Paulo, 27/10/2015)