Sem passar por comissões, Câmara dos Deputados pode votar PL que coloca em risco a vida de crianças e adolescentes
O projeto de lei que pretende impossibilitar o acesso ao aborto legal em crianças e adolescentes vítimas de violência sexual avançou na Câmara dos Deputados nesta semana. O Projeto de Decreto Legislativo (PDL) nº 3/2025, que derruba a resolução do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), que trata das diretrizes do aborto legal, recebeu o parecer favorável do relator, o deputado federal Luiz Gastão (PSD-CE), na última segunda-feira (8).
A resolução orienta que o aborto siga parâmetros internacionais, como recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e evidências científicas, garantindo segurança à vítima. Em seu artigo 33, o documento do Conanda estabelece que nenhuma exigência pode “atrasar, afastar ou impedir o pleno exercício, pela criança ou adolescente, de seu direito fundamental à saúde e à liberdade”.
Maria Fernanda Marcelino, da Marcha Mundial das Mulheres, afirma que o projeto possibilita “sustar uma decisão e colocar em risco a vida das meninas que não têm condições de perceber que estão grávidas ou que se sentem ameaçadas por adultos violadores. Portanto, quando se percebe, a gestação já está mais adiantada”.
Marcelino também defende que a Câmara dos Deputados “não tem nenhuma preocupação com a vida das mulheres e meninas”. Em suas palavras, “a pauta das mulheres sempre é colocada em risco quando a direita se sente acuada”, e os parlamentares “pretendem chantagear o governo para que aprove a anistia”, em referência ao projeto de lei que quer anistia aos condenados por tentativa de golpe de Estado.
“Nós sabemos disso desde muito tempo. Em outros momentos foi o PL do Estupro. A gente vê essa questão como uma chantagem com o governo federal para aprovar absurdos como a anistia ou não aprovar a isenção de imposto de renda para as pessoas que ganham até R$ 5 mil, entre outras pautas”, conclui.
O advogado Ariel de Castro Alves, especialista em infância e membro da Comissão de Direitos da Criança e do Adolescente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), na mesma linha, argumenta que o projeto é uma “verdadeira afronta” às prerrogativas e competências do Conanda de regulamentar as diretrizes do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e de estabelecer as orientações para as políticas nacionais de proteção de crianças e adolescentes.
“As resoluções do Conanda apenas estabeleceram princípios e diretrizes para o atendimento humanizado e célere de crianças e adolescentes vítimas de violência nos serviços de saúde, assistência social, policiais e judiciais, com base em disposições já existentes no ECA e na Constituição Federal”, diz.
“Se esse projeto for aprovado no Congresso Nacional, esperamos que seja vetado pelo Presidente da República, já que afronta as competências de um órgão do governo federal, o Conanda.”
Uma nota técnica da campanha Criança Não é Mãe classifica o PDL como um “grave retrocesso” à proteção das crianças e adolescentes no país. Segundo a campanha, entre 2018 e 2023, uma menina de 10 a 19 anos morreu por semana devido a complicações na gestação.
“A OMS aponta que as complicações durante a gravidez e o parto são a segunda causa de morte entre as jovens de 15 a 19 anos em todo o mundo. Crianças e adolescentes de 10 a 19 anos correm maior risco de eclâmpsia, endometrite puerperal e infecções sistêmicas do que mulheres de 20 a 24 anos. Além disso, nascidos de adolescentes têm mais chances de apresentar baixo peso, prematuridade e outras condições neonatais graves”, diz a campanha no comunicado.
“Socialmente, a gravidez precoce limita as oportunidades educacionais e sociais das jovens. A gravidez nessa fase de desenvolvimento fisiológico e psicossocial está diretamente associada à evasão escolar e à interrupção do projeto de vida. Enquanto a taxa de evasão escolar é de 5% entre adolescentes sem filhos, ela sobe para 47% entre aquelas que se tornam mães precocemente”, afirma.
Um levantamento da Associação de Obstetrícia de Rondônia aponta que, em 2023, enquanto cerca de 14 mil meninas de 10 a 14 anos tiveram filhos no Brasil, apenas 154 tiveram acesso ao aborto legal.
Entre 2015 e 2019, 67% dos 69.418 estupros tiveram como vítimas meninas da mesma faixa etária, segundo o estudo Sem deixar ninguém para trás, do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs), vinculado à Fundação Oswaldo Cruz Bahia (Fiocruz). Na maioria dos casos (62%), os autores eram conhecidos das vítimas.