Questão do aborto legal precisa ser tratada sob a ótica do direito à saúde, por Fabiana Dal’Mas Rocha Paes

12 de setembro, 2016

Neste mês de setembro, há um grande debate a respeito da ação civil pública ajuizada no Supremo Tribunal Federal, que tem como um dos pedidos, a autorização para realização de aborto para gestantes portadoras de zika, em razão do intenso sofrimento psicológico. O STF decidirá, em breve, a respeito desta demanda. O Ministério Público já deu parecer favorável, caracterizando o aborto legal nesta circunstância.

(ConJur, 12/09/2016 – acesse no site de origem)

O caso gerou uma ampla discussão sobre a necessidade de se assegurar o direito à assistência médica a gestante, sobretudo em situações de aborto legal. A possibilidade de aborto, nos casos em que a gestante gera um feto com anencefalia, já foi questionada no STF, que permitiu esta prática. Note-se que na sociedade brasileira, assim também na América Latina em geral, ainda existe uma resistência muito grande em relação à necessidade de se garantir os direitos reprodutivos às mulheres. É fato que este desrespeito aos direitos consagrados na legislação nacional e nos tratados internacional se deve aos anseios por controlar a sexualidade das mulheres, até porque são elas que engravidam.

Leia mais: Senado lança consulta pública sobre legalização do aborto em todos os casos (180 Graus, 12/09/2016)

Em outro caso, a Associação Artemis ingressou com petição na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, em relação ao não atendimento à gestante em caso de aborto legal, decorrente de estupro, alegando a prática de tortura física e psicológica, em caso ocorrido em Goiás. O caso ainda não foi analisado[1]

Em quais situações o aborto, nos termos da legislação brasileira, é permitido? Qual o alcance da proteção aos direitos humanos das mulheres na assistência ao aborto legal? Neste contexto, como compreender o direito à assistência à saúde integral, inclusive na situação de aborto legal?

Com efeito, desde o início da década de 1990 foram editados muitos instrumentos legislativos visando garantir o atendimento, na rede pública de saúde, aos casos de aborto legal. Isto foi possível em razão da intensa mobilização de diversos grupos de mulheres, em união com a Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo).[2] Cumpre destacar que o Ministério da Saúde editou duas normas técnicas a respeito deste tema: “Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes” e a norma técnica: “Atenção humanizada ao abortamento”.[3]

Como sabemos, a legislação brasileira vigente permite expressamente o aborto em duas situações específicas: quando a vítima sofreu um estupro ou há risco de morte da mulher[4]. Nestas duas hipóteses, a lei permite a prática do aborto legal, que deve ser prestado, pelo sistema público e privado de saúde, de forma segura e integral, a todas as gestantes. A partir do precedente no STF de 2012, por 8 votos a 2,  foi permitida a interrupção da gestação nos casos de anencefalia. Neste julgamento, os ministros decidiram que os médicos que realizam a cirurgia e as gestantes que decidam interromper a gravidez não praticam crime. Assim deliberou o STF:[5]

“O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, julgou procedente a ação para declarar a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126, 128, incisos I e II, todos do Código Penal, contra os votos dos Senhores Ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello que, julgando-a procedente, acrescentavam condições de diagnóstico de anencefalia especificadas pelo Ministro Celso de Mello; e contra os votos dos Senhores Ministros Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso (Presidente), que a julgavam improcedente. Ausentes, justificadamente, os Senhores Ministros Joaquim Barbosa e Dias Toffoli. Plenário, 12.04.2012.”

Como ocorre com uma grande parte da legislação pátria, o fato de existir uma legislação específica e uma decisão do STF, não garante necessariamente que esse direito das gestantes seja efetivado pelas instituições de saúde. Com efeito, os serviços de aborto legal no Brasil vêm enfrentando obstáculos crescentes, em virtude das pressões exercidas por extratos conservadores da sociedade brasileira e determinados setores religiosos, em que pese à laicidade do Estado brasileiro. Antes existiam aproximadamente 65 serviços[6] que atendiam às gestantes que necessitavam realizar o procedimento de aborto legal, atualmente os números diminuíram sensivelmente para aproximadamente 30 serviços, muito embora não seja possível obter a informação exata acerca do número de serviços, por falta de registros formais.[7] A transparência a respeito do número de serviços, a sua distribuição regional (ou da inexistência destes serviços em determinadas regiões do Brasil) e o número de atendimentos em caso de aborto legal, também não se encontram sistematizados de forma eficiente, técnica e ampla, o que por si só já caracteriza uma omissão estatal no dever de prestar a assistência integral à saúde.

É preciso ter coragem para dar a visibilidade e a dimensão necessárias ao aborto legal. Conforme Pesquisa Nacional sobre o aborto, uma em cada cinco mulheres brasileiras entre 18 e 29 anos já realizou aborto no Brasil.[8]A questão precisa ser tratada sob a ótica do direito à saúde. Sabemos que o aborto inseguro gera perigo à vida das gestantes, em especial àquelas mulheres em situação de vulnerabilidade social. A discussão sobre este tema não pode ser polarizada apenas entre aqueles que defendem a liberdade de escolha da mulher e aqueles que opinam pela criminalização desta ação, e diminuição progressiva de suas hipóteses legais. Esta discussão precisa levar em conta os dados científicos disponíveis, as estatísticas de mortalidade materna, bem como a tendência mundial dos países que conseguiram reduzir estes índices, com preservação da saúde das mulheres e economia de recursos. Também deve ser levado em conta a legislação nacional e os tratados internacionais ratificados pelo Brasil[9]

O Brasil avançou em termos de ampliação quanto à assistência médica às gestantes, durante a gravidez, o parto e pós-parto, alcançando quase que a totalidade das gestantes, mas o mesmo não ocorre quanto aos serviços de aborto legal.

Além disso, desafios persistem quanto à qualidade da assistência prestada. Parece-nos que o pleno acesso à saúde, em casos de aborto legal, é um objetivo importante para a melhoria do acesso à saúde das gestantes no Brasil, mas persiste um longo caminho para sua plena concretização.[10]

A pesquisa chamada “Nascer no Brasil” traça um triste panorama quanto à atenção obstétrica no nosso país.[11] Uma das observações importantes diz respeito à necessidade de melhora não apenas na assistência após a gravidez, mas também um melhor esclarecimento do planejamento reprodutivo para evitar gravidez indesejada, o que não ocorre com sucesso atualmente. A pesquisa concluiu que 45% das mulheres entrevistadas não desejavam estar grávidas. Este número aumenta em 2/3 em se tratando de adolescentes que não desejavam estar grávidas.[12] É sabido que o grupo que está mais exposto à violência doméstica é aquele formado por adolescentes. Estas sofrem diversas formas de violência doméstica, em especial a sexual, inclusive por parte de pessoas próximas (padrasto, pai, avô, tio, etc.), o que as torna muito inseguras na esfera privada, local onde deveriam estar mais protegidas. Incumbe ao Estado, portanto, fornecer a segurança e o acesso à saúde para estas adolescentes.

É imprescindível darmos publicidade aos altos índices de estupro no Brasil. A cada 11 minutos uma mulher/adolescente é estuprada no Brasil.[13] Dessa forma, a hipótese de aborto legal em caso de estupro atinge um expressivo número de mulheres brasileiras.

As constituições e legislações de muitos países, na região da América Latina inclusive, reconhecem os direitos sexuais e reprodutivos, em especial o direito à assistência à saúde e ao aborto legal, com respeito aos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana.

Em que pese à importância destes Direitos Humanos, que são partes essenciais do discurso político e jurídico no Brasil e na América Latina, a prática de diversos países revela que muitas vezes estes direitos são considerados como normas programáticas, ou seja, não precisam ser efetivados imediatamente. Em muitos países, há uma margem de discricionariedade para a garantia e efetivação destes direitos e em diversos casos o reconhecimento destes direitos depende de razões de conveniência política e religiosa.[14]

Deve-se entender, porém, que os direitos sexuais e reprodutivos, incluindo o acesso ao aborto legal, são garantias exigíveis que geram obrigações concretas e específicas, são, portanto, responsabilidades Estatais. A falta de cumprimento destas obrigações caracteriza uma violação aos compromissos juridicamente vinculantes assumidos por meio de tratados internacionais devidamente incorporados ao direito interno.

O artigo 12, da Convenção CEDAW, Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, dispõe o seguinte: “…os Estados-Partes garantirão à mulher assistência apropriada em relação à gravidez, ao parto e ao período posterior ao parto, proporcionando assistência gratuita quando assim for necessário, e lhe assegurarão uma nutrição adequada durante a gravidez e a lactância.”[15] A assistência apropriada em relação ao aborto legal é aquela que respeita os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana, portanto constitui um direito humano fundamental.

A existência de importantes compromissos internacionais assinados e adotados pelo Estado brasileiro, como a Convenção CEDAW, geram obrigações no que concerne ao imediato cumprimento. A despeito disso, muitas destas obrigações não estão sendo cumpridas a contento. Um exemplo disso é a garantia ao atendimento eficiente na área da saúde, em especial para a mulher que necessita fazer um aborto legal.

Há um desconhecimento quanto às normas pertinentes ao aborto legal. A discussão encontra-se permeada por preconceitos e dogmas religiosos. A Constituição Federal de 1998 contém o princípio da igualdade, e dispõe sobre o direito à plena assistência à saúde, o que necessariamente inclui a assistência à saúde da mulher em situação de aborto legal. O direito à saúde encontra previsão no artigo 6º, da Constituição Federal Brasileira. Além disso, o Estado Brasileiro é laico.

Na prática, todavia, observa-se o descumprimento de inúmeras diretrizes contidas em portarias, na legislação nacional e no direito internacional. Por esta razão, há uma distância significativa entre a previsão legal e a sua plena efetivação. Se houver violação ao direito das mulheres gestantes, é possível procurar os órgãos públicos tais como o Ministério Público Estadual, o Ministério Público Federal, a Defensoria Pública, a central 180 e o disque saúde 136, além de formalizar reclamações nos Conselhos de Classe. Os órgãos públicos deverão analisar o caso concreto, podendo tomar medidas judiciais, tanto na esfera cível como na criminal. Se as instituições brasileiras não resolverem os casos de violação a estes direitos, em especial quanto ao acesso à saúde, esses casos poderão ser, eventualmente, questionados perante as instâncias internacionais.

Para tanto, é muito importante que a gestante saiba que ela necessita, em primeiro lugar, reunir determinados documentos, dentre outros, o cartão de acompanhamento da gestante e a cópia do prontuário médico. Todas as gestantes têm direito a estes documentos, bastando solicitá-los no estabelecimento de saúde. Além disso, nos termos da Portaria 1508/2005, não é necessária a apresentação de boletim de ocorrência. Isto porque referida Portaria dispõe o seguinte: “Norma Técnica sobre Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes não obriga as vítimas de estupro da apresentação do Boletim de Ocorrência para sua submissão ao procedimento de interrupção da gravidez no âmbito do SUS[16]

Na construção de uma agenda para a garantia ao pleno acesso à saúde para gestante são essenciais: a divulgação das normas que regulamentam o aborto legal, no âmbito internacional e nacional, o que possibilitará o acesso à justiça ou aos comitês e cortes internacionais, quando houver violação à legislação; o amplo debate com participação da sociedade, dos profissionais de saúde, da academia, do sistema de justiça; a afirmação dos direitos sexuais e reprodutivos com um olhar interseccional (não apenas de gênero, mas também étnico racial e de classe) e regional; a prevenção da gravidez na adolescência; a sensibilização na formação dos profissionais de saúde e do direito sobre os direitos das gestantes; a garantia ao direito ao acompanhante à gestante; a garantia ao direito à informação; a garantia ao acesso pleno à saúde e o incentivo às boas práticas obstétricas, fundamentadas sempre em evidências científicas.

Temos que nos colocar no lugar da gestante portadora de zika, da gestante que gera um feto com anencefalia, da mulher ou adolescente vítima de estupro, da mulher em risco de vida, pois assim poderemos entender melhor a importância de se facilitar o pleno acesso à saúde. Espera-se, por isso, que o STF compreenda o sofrimento psicológico da mulher gestante portadora de Zika para o fim de reconhecer o seu acesso pleno à saúde, nos exatos termos da Constituição Cidadã de 1988, da Convenção CEDAW e do sistema internacional de Direitos Humanos das Mulheres. Uma adequada assistência à gestante possibilitará que o Brasil finalmente atinja o 5º Objetivo do Milênio, melhorando a saúde materna, uma vez que atualmente os índices de morte materna são alarmantes e subnotificados, o que caracteriza uma verdadeira omissão estatal na garantia aos direitos reprodutivos das mulheres brasileiras.


[1] ARTEMIS, KEUNECKE, Ana Lucia, MARQUES, Raquel, SOUSA, Valéria, http://artemis.org.br/artemis-faz-denuncia-a-comissao-interamericana-de-direitos-humanos-da-oea/, em setembro de 2016.

[2] SANTIN, Myrian, Sexualidade e Reprodução: da natureza aos direitos: a incidência da Igreja Cem viratólica na Tramitação do PL 20/91, aborto legal, e PL 1151/95, união civil de pessoas do mesmo sexo. Tese (Doutorado), Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2005.

[3] BRASIL, Ministério da Saúde, Norma Técnica, Brasília 2005.

[4] Artigo 128, incisos I e II, do Código Penal.

[8] DINIZ, Debora, MEDEIROS, Marcelo, Aborto no Brasil: uma Pesquisa Domiciliar com Técnica de Urna, ANIS, Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero.

[9] PORTO, Rozeli Mari, Profissionais de Saúde e Aborto Seletivo em Hospital Público em Santa Catarina, em Sexualidade, Reprodução e Saúde, HEILBORN, Maria Luiza e outros, Editora FGV, 2009.

[10] O mesmo ocorre com a humanização do parto, veja PAES, Fabiana Dal Mas Rocha, O Parto Humanizado, Conjur.

[11] SOUZA, Valéria, Nota Técnica, Violência Obstétrica, Artemis, 2015.

[12] Nascer no Brasil, Inquérito Nacional sobre o Parto e Nascimento, Coordenação Maria do Carmo Leal,  Cadernos de Saúde Pública, Volume 30, 2014.

[14] Derecho a La Vida: Diálogo sobre justicia, igualdad de género y Derechos Reproductivos en América Latina, III Congreso Latinoamericano Jurídico sobre Derechos Reproductivos, 14, 15 y 16 Octubre de 2013, México.

[15]  Artigo 12, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as formas de Discriminação contra a Mulher.

 é promotora de Justiça do MP-SP (atua no Grupo de Enfrentamento à Violência Doméstica), membro do Ministério Público Democrático, mestre em Direitos Humanos e Justiça Social pela Universidade de New South Wales (Sydney, Austrália) e doutoranda na Universidade de Buenos Aires (Argentina).

Nossas Pesquisas de Opinião

Nossas Pesquisas de opinião

Ver todas
Veja mais pesquisas