Ao decidir que interromper a gravidez até os três meses de gestação não é crime, no julgamento de um caso isolado, STF aponta necessidade de se adequar legislação à realidade
(O Globo, 07/12/2016 – acesse no site de origem)
Estima-se que, a cada ano, entre 800 mil e 1,1 milhão de mulheres se submetam no Brasil a algum tipo de procedimento abortivo. Em 2014, o impacto dessas intervenções, principalmente os relativos ao tratamento de danos físicos sofridos pelas pacientes, deixou espetado no sistema público de saúde um custo de pelo menos R$ 120 milhões. Para além do viés meramente econômico, nesse indicador está embutida uma tragédia social, para a qual a sociedade não pode fechar os olhos: uma mulher morre a cada dois dias no país, devido a abortos inseguros.
É uma loteria da saúde, que encobre uma hipocrisia (a de que, por proibido, oficialmente a interrupção de gravidez só se realiza no país nos casos previstos em lei) e uma danação: a maioria absoluta das mulheres que recorrem à contracepção provocada está nos estratos de população mais pobre. Sem condições financeiras de procurar atendimento médico adequado, elas se submetem a abortos clandestinos, feitos em clínicas precárias e sem contar com acompanhamento apropriado.
Com risco ou sem ele, o fato é que esse é um problema real. Segundo o IBGE, mais de 8,7 milhões de brasileiras com idade entre 18 e 49 anos já fizeram pelo menos um aborto. Isso, a despeito de esse procedimento ser tipificado como crime no Código Penal (artigo 124), passível de pena de prisão, salvo nos casos em que a legislação se flexibiliza devido a razões de ordem médica ou social: quando não há meios de salvar a vida da mãe durante a gravidez ou no parto, nos casos de gestação resultante de estupro ou quando o feto comprovadamente é anencefálico.
Em vista dessa realidade, a decisão do Supremo Tribunal Federal tomada semana passada, de mandar soltar funcionários de uma clínica clandestina presos no Rio de Janeiro, é um avanço institucional para o país começar a discutir seriamente uma nova abordagem, adequada à realidade, da questão do aborto. O julgamento do STF seguiu na linha de uma lógica própria da Corte, que em 2012, em sentença histórica, já havia decidido descriminalizar a prática nos casos de feto com anencefalia, e também vai na direção de jurisprudência sobre o tema já firmada em países como EUA, Alemanha, Canadá e outros, nos quais é aceita a interrupção da gravidez até três meses de gestação.
O aborto, sem dúvida, é assunto polêmico. Nele, estão inseridas não só injunções sociais, mas também questões afeitas a religião, cultura etc. São circunstâncias importantes, mas que não podem se sobrepor ao que de fato, como definiu em seu voto o ministro Luís Roberto Barroso, precisa ser discutido: a criminalização, tal como delimitada na legislação atual, sem a “moratória” do período de três meses de gestação, viola direitos fundamentais da mulher.
Esta posição do STF sinaliza uma tendência positiva da Corte de que, a seu tempo, a legislação terá de se adequar à realidade.