Maioria dos casos de violência sexual contra menores no Brasil são causados por adultos que convivem com as vítimas
Mariana* tinha 12 anos quando foi levada para um abrigo no interior de São Paulo com suas duas irmãs de 9 e 4 anos, em novembro de 2023. Apesar da pouca idade, era a segunda vez que a menina era afastada dos pais e posta em acolhimento institucional, “devido à complexa problemática da família” e “intenso risco”, segundo documentos sigilosos obtidos pela Agência Pública. A mãe, dependente química, era constantemente internada e passava longos períodos fora de casa. O pai era ausente e negligente. Mariana tinha ainda duas irmãs gêmeas bebês, que foram levadas para outro abrigo.
Os documentos mostram que, segundo agentes de saúde da região que monitoravam a família, as meninas não tinham as vacinas em dia e sofriam com diversas doenças decorrentes da falta de higiene e cuidados.
O processo e todos os documentos correlatos aos quais a Pública teve acesso correm em segredo de justiça. Por isso, os nomes e detalhes do caso foram preservados.
Na primeira conversa com a equipe do abrigo, Mariana disse que nunca tivera relações sexuais. No entanto, com o passar dos dias, os profissionais suspeitaram que a menina pudesse estar grávida, o que se confirmou após a realização de um teste de gravidez.
Muito fragilizada – segundo os laudos psicológicos que constam do processo – a menina disse que nunca havia sido orientada sobre questões de sexualidade, não sabia que estava grávida e contou que havia sido “forçada” pelo tio, irmão de sua mãe.
Mariana não mentiu.
Ela nunca teve relações sexuais. Foi estuprada por um adulto de confiança, como acontece em 81,5% dos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil, segundo dados da UNICEF, e como acontece a cada 8 minutos com uma menina de até 19 anos.
Diante da situação grave e complexa, uma rede de acolhimento e defesa foi acionada para lidar com o caso de Mariana: o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), serviço público mantido pelo Governo Federal e pelas prefeituras brasileiras, que funciona como porta de entrada para a rede de assistência social e oferece serviços para fortalecer famílias e indivíduos em situação de risco; o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), unidade pública da política de Assistência Social onde são atendidas famílias e pessoas que estão em situação de risco social ou tiveram seus direitos violados; a equipe do abrigo; técnicas do Poder Judiciário; Secretaria Municipal de Saúde; Conselho Tutelar; o médico obstetra de alto risco do serviço médico local; psicólogos e assistentes sociais.
Todos se reuniram para ouvir e orientar a menina sobre seu direito à interrupção da gestação garantido por lei, e sobre os diferentes caminhos que ela poderia seguir caso optasse por manter a gestação.
Mas, como Mariana iria descobrir, essa quantidade de organizações e pessoas que deveriam protegê-la podem tê-la deixado ainda mais vulnerável.
A menina pedia para voltar para a casa do pai, mesmo com os maus tratos. Ela queria estar junto das outras duas irmãs bebês, que, no entanto, já tinham ido para outro abrigo.
Ela perguntava se poderia deixar o abrigo caso decidisse não interromper a gravidez. Quando esclarecido que voltar para casa não seria uma opção, ela disse que não queria manter. Repetidas vezes e para diferentes profissionais, como consta nos documentos analisados pela Pública, afirmou que não queria ter o filho do estupro. Falou tantas vezes que, em determinado momento, disse que não falaria mais sobre o assunto.
A gestação em crianças e adolescentes menores de 20 anos de idade, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), é de altíssimo risco. Para a gestante, existe maior risco de mortalidade materna, eclâmpsia, diabetes gestacional, hipertensão, anemia, infecções urinárias e infecções sexualmente transmissíveis (IST). Para o bebê, existe maior probabilidade de parto prematuro, baixo peso ao nascer, desnutrição fetal nos casos em que a mãe têm anemia, malformações e síndrome de Down.
Acionado pelo abrigo, o pai de Mariana “demonstrou descontentamento” com o assunto e declarou que “não sabia que a filha tinha vida sexual ativa”. Também reiterou mais de uma vez que concordava que o aborto legal era a melhor solução, admitindo que a situação de sua família não estava favorável, tanto que se fez necessário o acolhimento das filhas.
Mudança de rumo
Tudo corria relativamente como deve ser: a Justiça autorizou, e Mariana passou a ser atendida por uma equipe multidisciplinar de um hospital da região de Campinas em São Paulo, que fica a uma hora de distância da cidade onde Mariana estava abrigada para fazer o procedimento o quanto antes, já que as semanas iam passando e a gestação avançando.
Foi então que tudo mudou. No dia em que a menina de 12 anos iria para hospital fazer o procedimento, o pai apareceu no abrigo com duas advogadas vindas da cidade de Santos, que fica a mais de 150 km de distância, dizendo “de forma muito violenta”, como consta nas atas, que não concordava mais com o aborto.
As advogadas Ana Beatriz De Lima Hernandez e Amanda Ferrari Rebello, que diziam atuar “pro bono” entraram com um mandado de segurança a fim de suspender a determinação Judicial. Ali se iniciou uma batalha mirando não apenas o impedimento do aborto garantido por lei, mas também a destituição da promotora de Justiça representante do Ministério Público de São Paulo que atuava no caso, acusada pelas duas advogadas de “fazer a cabeça” da menina.