(ConJur, 14/03/2016) Em fevereiro de 2016, o jornal O Estado de São Paulo relatou que uma jovem de 16 anos, grávida pela primeira vez, chegou à maternidade com contrações ritmadas e sete centímetros de dilatação, sem queixas de dores fortes. A médica responsável determinou o uso de ocitocina diretamente no soro, sem o uso de bomba de infusão e sem controle de número de gotas, em que pese a jovem e sua genitora tenham expressamente manifestado a vontade de que não queriam o procedimento. A reportagem destaca que a médica determinou o uso da manobra de Kristeller e a proibiu que a gestante pudesse beber água durante o procedimento. A notícia, que teve como fonte um estudante de medicina que acompanhava o parto com sua professora da faculdade de Medicina, parece demonstrar que existe um longo caminho a ser percorrido para que a legislação de humanização do parto seja respeitada. A matéria chama atenção para a reação do estudante: “Estudante de medicina escreve desabafo depois de assistir a parto violento feito por professora: ‘Chorei de raiva e frustração no quarto dos internos’”.[1]
A reportagem gerou um amplo debate sobre a necessidade de respeito às normas sobre parto humanizado. O Brasil avançou em termos de ampliação quanto à assistência médica às gestantes, durante a gravidez, o parto e pós-parto, alcançando quase que a totalidade das gestantes. No entanto, desafios persistem quanto à qualidade da assistência prestada, ao que parece, a humanização do parto é um objetivo importante para a melhoria do acesso à saúde, mas persiste um caminho longo para sua concretização.
A pesquisa chamada “Nascer no Brasil” revela estarem corretas as reclamações do movimento de mulheres e de humanização do parto, quanto à má qualidade da assistência obstétrica no Brasil. A pesquisa constatou, ainda, a existência de “evidências contundentes das desigualdades socioeconômicas, raciais e regionais na atenção ao parto”. [2]
A referida pesquisa também traça um triste panorama quanto à atenção obstétrica no nosso país. Uma das observações importantes diz respeito à necessidade de melhora não apenas na assistência após a gravidez, mas também um melhor esclarecimento do planejamento reprodutivo para evitar gravidez indesejada, o que não ocorre com sucesso atualmente. A pesquisa concluiu que 45% das mulheres entrevistadas não desejavam estar grávidas, este número aumenta em 2/3 em se tratando das adolescentes.[3]
Esta mesma pesquisa verificou o elevado número de cesáreas, que se encontra em torno de 52% no setor público, podendo chegar a 88% no setor privado, contrariando as recomendações da OMS.[4]
O parto, nos termos do Direito Internacional e da legislação brasileira, deve ser humanizado. Qual o alcance da proteção aos direitos humanos das mulheres no parto? Neste contexto, como compreender o parto humanizado?
As constituições e legislações de muitos países da América Latina reconhecem os direitos sexuais e reprodutivos, em especial o direito à assistência à saúde e ao parto de qualidade, com respeito aos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana.
Em que pese a importância destes Direitos Humanos, que são partes essenciais do discurso político e jurídico no Brasil e na América Latina, a prática de diversos países revela que, muitas vezes, estes direitos são considerados como normas programáticas, ou seja, não precisam ser efetivados imediatamente. Em muitos países, há uma margem de discricionariedade para a garantia e efetivação destes direitos e em diversos casos o reconhecimento destes direitos depende de razões de conveniência política.[5]
Os direitos sexuais e reprodutivos, como o acesso ao parto humanizado, são garantias exigíveis que geram obrigações concretas e específicas. A falta de cumprimento destas obrigações caracteriza uma violação aos compromissos juridicamente vinculantes, assumidos por meio de tratados internacionais e já devidamente incorporados ao direito interno.
O artigo 12 da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Convenção CEDAW), dispõe o seguinte: “…os Estados-Partes garantirão à mulher assistência apropriada em relação à gravidez, ao parto e ao período posterior ao parto, proporcionando assistência gratuita quando assim for necessário, e lhe assegurarão uma nutrição adequada durante a gravidez e a lactância”.[6] A assistência apropriada em relação ao parto é aquela que respeita os princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana, portanto constitui um direito humano fundamental.
A existência de importantes compromissos internacionais assinados e adotados pelo Estado brasileiro, como a Convenção CEDAW, geram obrigações nos seus cumprimentos. Apesar disso, muitas destas não estão sendo cumpridas a contento. Um exemplo disso é a garantia ao atendimento eficiente na área da saúde, em especial no momento do parto.
Há um desconhecimento quanto à extensão e alcance do direito ao parto humanizado. No que diz respeito à extensão, o direito ao parto humanizado está transversalmente relacionado com muitos direitos humanos, mais especificamente quanto ao direito à saúde, entendido como o direito ao desfrute do mais alto nível de bem estar físico, psicológico e social.[7]
No Brasil o sentido de humanização do parto começou a ser debatido com mais intensidade na década de 1970, impulsionados por experiências em distintos Estados. A professora e médica Simone Diniz ressalta a criação do Rehuma (Rede de Humanização do Parto e do Nascimento) que chama a atenção para alguns aspectos importantes para compreender o parto humanizado:
“Em 1993, é fundada a Rede pela Humanização do Parto e do Nascimento (Rehuna), que atualmente congrega centenas de participantes, entre indivíduos e instituições. A Carta de Campinas, documento fundador da Rehuna, denuncia as circunstâncias de violência e constrangimento em que se dá a assistência, especialmente as condições pouco humanas a que são submetidas mulheres e crianças no momento do nascimento (Rehuna, 1993). Considera que, no parto vaginal a violência da imposição de rotinas, da posição de parto e das interferências obstétricas desnecessárias perturbam e inibem o desencadeamento natural dos mecanismos fisiológicos do parto, que passa a ser sinônimo de patologia e de intervenção médica, transformando-se em uma experiência de terror, impotência, alienação e dor. Desta forma, não surpreende que as mulheres introjetem a cesárea como melhor forma de dar à luz, sem medo, sem risco e sem dor.”[8]
A humanização do parto tem muitos sentidos, teóricos e práticos. No aspecto teórico, sob a égide do Direito, a humanização faz parte dos direitos reprodutivos, que devem ser interpretados como direitos humanos fundamentais. No aspecto prático, a humanização do parto deve ser baseada na assistência à saúde de qualidade, orientada pela melhor evidência científica. A humanização tem como foco preservar e promover a fisiologia.
Podemos dar ao termo humanização do parto uma variedade de interpretações e a um conjunto amplo de propostas de boas práticas obstétricas, trazendo ao cotidiano dos serviços conceitos inovadores e desafiadores, que algumas vezes entram em conflito. Ensina Simone Diniz que: “As abordagens baseadas em evidências científicas e as baseadas em direitos, entre outras, são recriadas pelos diversos atores sociais, que as utilizam como instrumento para a mudança, que ocorre muito lentamente e apesar de enorme resistência. Humanização é também um termo estratégico, menos acusatório, para dialogar com os profissionais de saúde sobre a violência institucional”.[9]
A Constituição Federal de 1998 contém o princípio da igualdade e dispõe sobre o direito à plena assistência à saúde e o dever de que o parto seja humanizado. O direito à saúde encontra previsão no artigo 6º, da Constituição Federal Brasileira. Além disso, é garantida à gestante o direito à licença por 120 dias (artigo 7º, inciso XVIII, da CF).
No âmbito Estadual do Estado de São Paulo em março de 2015 foi sancionada a Lei 15.759/2015 que dispõe sobre o parto humanizado, a legislação estadual possui disposições muito semelhantes à Lei 15.894/2013 da cidade de São Paulo, que também dispõe sobre o parto humanizado.
O artigo 1º da Lei 15.759 preceitua que: “toda gestante tem direito a receber assistência médica humanizada durante o parto nos estabelecimentos públicos de saúde”. Extrai-se do texto legal que o parto humanizado possui três princípios: a segurança, transparência e pouca invasão.
O princípio da segurança significa que todas as cautelas devem ser tomadas para o bem estar da gestante e do recém-nascido. Determina o artigo 3º, inciso I, da Lei 15.759: “I- a harmonização entre a segurança e o bem estar da gestante ou parturiente, assim como do nascituro”.
A transparência consiste na previsão de que a equipe deve fornecer à gestante todas as informações necessárias sobre a gestação, diversas formas de parto e amamentação. Dispõe o artigo 8º da Lei 15.759 : “Toda gestante atendida pelo Sistema Único de Saúde — SUS no Estado terá direito a ser informada, de forma clara, precisa e objetiva, sobre todas as rotinas e procedimentos eletivos de assistência ao parto, assim como as implicações de cada um deles para o bem estar físico e emocional da gestante e do recém-nascido”.
A pouca invasão tem relação com boas práticas obstétricas, a interferência deve ser mínima, dando preferência a métodos menos invasivos, sendo a cesariana bem indicada um recurso importante, quando haja indicação médica. Prevê o artigo 3º, inciso III, da Lei 15.759: “III- a preferência pela utilização dos métodos menos invasivos e mais naturais”.
Estes princípios do parto humanizado podem ser efetivados por meio de algumas práticas:1) preocupação com o bem estar da gestante e do nascituro; 2) mínima interferência médica; 3) preferência por métodos menos invasivos; 4) escolha pela parturiente, sempre que não haja risco; e 5) fornecimento de informações.
No âmbito da legislação nacional também o conceito da humanização na atenção obstétrica e neonatal já foi incorporado pelo Ministério da Saúde. Existem inúmeras Portarias que dispõe sobre esta política. A Portaria 985/1999, Criação dos Centros de Parto Normal; Portaria 466/2000, Pacto pela Redução das Cesarianas; Portaria 569/2000, Institui o Programa de Humanização no Pré-Natal e Nascimento; Pacto Nacional pela Redução da Mortalidade Materna e Neonatal; Portaria 1067/2005, Política Nacional de Atenção Obstétrica e Neonatal; Portaria 399/2006, Pacto pela Saúde; Portaria 699/2006, Pacto pela Vida e de Gestão; Portaria 2669/2009, Prioridade do Pacto pela Saúde e Pacto pela Vida para redução da mortalidade materna e infantil; Portaria 1459/2011, Institui a Rede Cegonha; Portaria 2799/2008, Institui a Rede Amamenta Brasil; Portaria 1153/2014, Redefine os critérios de habilitação da Iniciativa do Hospital Amigo da Criança (IIHAC), garantindo o contato de pele e a amamentação na primeira hora de vida; Portaria 371/2014, Atenção Integral e Humanizada ao Recém-Nascido.[10]
O programa de humanização no pré-natal e nascimento está estruturado no Ministério da Saúde e tem algumas diretrizes fundamentais: 1) toda gestante tem direito de saber e ter assegurado o acesso à maternidade em que será atendida no momento do parto; 2) toda gestante tem direito ao acesso a atendimento digno e de qualidade no decorrer da gestação, parto e puerpério; 3) todo recém-nascido tem direito à assistência neonatal de forma humanizada e segura; 4) toda gestante tem direito à assistência ao parto e ao puerpério e que esta seja realizada de forma humanizada e segura.[11]
Por fim, uma das críticas que podem ser feitas às leis do parto humanizado, consiste na falta de previsão de atuação de outros profissionais no momento do parto como as enfermeiras obstétricas, também precisa ser debatida a participação das “doulas” de acordo com a autonomia de vontade das gestantes e das famílias atendidas por elas.
Uma forma de prevenir arbitrariedades, garantindo acesso ao parto humanizado e evitando a prática de violência durante o parto, é a efetivação do direito ao acompanhante. Também cresceu a conscientização sobre o direito ao acompanhante que se encontra previsto em lei (Lei 11.108/2005), pode e deve ser exigido pela gestante. Entendo que a presença de um acompanhante pode evitar a prática de violência obstétrica. O acompanhante é de livre escolha da gestante deve ser admitido tanto em partos normais ou cesáreas, em hospitais públicos ou privados. A falta de estrutura física não pode servir como desculpa para a proibição ao exercício deste direito, devendo os hospitais estar devidamente equipados para atender às gestantes.[12]
Na prática, todavia, observa-se o descumprimento de inúmeras diretrizes contidas nas Portarias, na legislação nacional e na legislação internacional. Portanto, existe uma distância muito grande entre a previsão legal e a sua efetivação. Se houve violação ao direito é possível procurar os órgãos públicos como o Ministério Público Estadual, o Ministério Público Federal, a Defensoria Pública, na central 180 e no disque saúde 136, além de formalizar reclamações nos Conselhos de Classe. Os órgãos públicos deverão analisar o caso concreto, podendo tomar medidas judiciais, cíveis ou criminais.
É relevante que a gestante saiba que ela necessita, em primeiro lugar, reunir os documentos, como o cartão de acompanhamento da gestante e a cópia do prontuário médico. Todas gestantes têm direito a estes documentos, bastando solicitá-los no estabelecimento de saúde onde o parto ocorreu.
Na construção de uma agenda para a garantia ao parto humanizado são essenciais: a divulgação das normas que regulamentam o parto humanizado, no âmbito internacional e nacional, o que possibilitará o acesso à Justiça ou aos Comitês e Cortes internacionais, quando houver violação à legislação; o amplo debate com participação da sociedade, dos profissionais de saúde, da academia, do sistema de justiça; a afirmação dos direitos sexuais e reprodutivos com um olhar interseccional (não apenas de gênero, mas também étnico racial e de classe) e regional; a prevenção da gravidez na adolescência; a sensibilização na formação dos profissionais de saúde e do direito sobre os princípios do parto humanizado: a segurança, transparência e pouca invasão; a garantia ao direito ao acompanhante à gestante; a garantia ao direito à informação; a garantia ao acesso pleno à saúde e o incentivo às boas práticas obstétricas, fundamentadas sempre em evidências científicas. Temos que reinventar o parto e criar novas possibilidades, assim evitaremos novos casos como o da jovem gestante de 16 anos.
[1] Jornal o Estado de São Paulo, Blog, Rita Lisauskas, 26/02/2016.
[2] Nascer no Brasil, Inquérito Nacional sobre o Parto e Nascimento, Coordenação Maria do Carmo Leal, Cadernos de Saúde Pública, Volume 30, 2014.
[3] Nascer no Brasil, Inquérito Nacional sobre o Parto e Nascimento, Coordenação Maria do Carmo Leal, Cadernos de Saúde Pública, Volume 30, 2014.
[4] Nascer no Brasil, Inquérito Nacional sobre o Parto e Nascimento, Coordenação Maria do Carmo Leal, Cadernos de Saúde Pública, Volume 30, 2014.
[5] Derecho a La Vida: Diálogo sobre justicia, igualdad de género y Derechos Reproductivos en América Latina, III Congreso Latinoamericano Jurídico sobre Derechos Reproductivos, 14, 15 y 16 Octubre de 2013, México.
[6] Artigo 12, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as formas de Discriminação contra a Mulher.
[7] Conceito de Saúde da OMS. Derecho a La Vida: Diálogo sobre justicia, igualdad de género y Derechos Reproductivos en América Latina, III Congreso Latinoamericano Jurídico sobre Derechos Reproductivos, 14, 15 y 16 Octubre de 2013, México.
[8] DINIZ, Simone, Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos sentidos de um movimento http://www.scielo.br/pdf/csc/v10n3/a19v10n3
[9] DINIZ, Simone, Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos sentidos de um movimento http://www.scielo.br/pdf/csc/v10n3/a19v10n3
[10] SOUSA, Valéria, Violência Obstétrica, Nota Técnica, Considerações sobre a Violação de Direitos Humanos das Mulheres, no Parto, Puerpério e Abortamento.
[11] Ministério da Saúde, Programa de Humanização do Parto, Bvsms.saude.gov.br/bvs/publicações/parto.pdf, acesso in 12/03/2015.
[12] PAES, Fabiana, Violência Obstétrica, Por que as Mulheres Ficam Sozinhas na hora do Parto?, Revista Época, http://epoca.globo.com/vida/noticia/2015/08/violencia-obstetrica-por-que-mulheres-ficam-sozinhas-no-parto.html, em 18/11/2015.
Fabiana Dal’Mas Rocha Paes é promotora de Justiça do MP-SP, diretora do Ministério Público Democrático e mestre em Direitos Humanos e Justiça Social pela UNSW (Sydney, Austrália).
Acesse no site de origem: Respeito aos direitos humanos exige acesso ao parto humanizado, por Fabiana Dal’Mas Rocha Paes (ConJur, 14/03/016)