(O Globo, 04/11/2015) O Brasil tem uma rígida legislação, mas mortes decorrentes de práticas clandestinas e inseguras de interrupção da gravidez mostram que essa é uma questão de saúde pública
A cada dois dias, uma brasileira morre vítima de aborto inseguro, mórbido indicador de um número que impressiona: por ano, são realizados no Brasil entre 850 mil e mais de um milhão de procedimentos de interrupção da gravidez à margem da lei. Nessa lúgubre estatística, quanto maior a escala de pobreza da mulher que se submete a tais práticas, maior o risco a que ela expõe a própria vida. E isso num país que está entre as 66 nações (onde vivem 25,5% da população mundial) que têm as leis mais rígidas para reprimir, pela via da criminalização, intervenções abortivas em geral.
Este perfil sugere que, para além de injunções no âmbito da moral e da religião, dois vieses que mais acentuadamente marcam o debate sobre o tema no Brasil, e a despeito de estar em grande parte confinado a seus aspectos criminais, o aborto precisa ser encarado, pelo poder público, como um problema basicamente de saúde pública. A rígida legislação brasileira admite a interrupção da gravidez em apenas três hipóteses: risco iminente para a vida da gestante, concepção decorrente de violência física, estupro, contra a mulher e comprovada anencefalia do feto (esta, uma decisão do STF que encerrou longa polêmica).
No entanto, mesmo à margem da lei, o aborto é a quinta causa de mortalidade materna no país. Um sintoma inegável de que a criminalização não é suficiente para conter os milhares de procedimentos inseguros — antes, é fator de agravamento. A Organização Mundial de Saúde estima que, em países com legislação restritiva, são feitos anualmente 22 milhões de abortos, que levam à morte 47 mil mulheres; já nas nações com poucas restrições à interrupção da gravidez, logo, com práticas médicas seguras, a taxa de óbitos cai de forma acentuada. Fora isso, são grandes os prejuízos causados ao sistema público de saúde como decorrência de atendimentos prestados a mulheres vítimas de complicações decorrentes de abortos inseguros.
Por todos estes aspectos trata-se de perigoso retrocesso o projeto de lei aprovado recentemente em comissão da Câmara, que dificulta o acesso legal de mulheres vítimas de estupro a métodos abortivos (uma garantia constitucional). A proposta, do presidente da Casa, deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), ainda vai a plenário, mas com uma preocupante perspectiva de ser aprovada. Afinal, o projeto integra a “agenda conservadora” da chamada pauta bomba, com tramitação impulsionada por influência de Cunha.
O deputado tem patrocinado outros retrocessos — como o risco da flexibilização do Estatuto do Desarmamento. Houve a louvável exceção de ele ter contribuído para a Câmara rever a imperiosa questão da redução do limite da maioridade penal (ainda que o projeto em tramitação na Casa precise ser mais discutido, de modo a aperfeiçoar os critérios de punibilidade do jovem). Mas, em relação ao aborto, o projeto de Cunha atropela o bom senso e ameaça derrubar conquistas humanitárias que estão acima de aspectos legais.
Acesse o PDF: Restringir aborto em caso de estupro é retrocesso, editorial do Jornal O Globo (O Globo, 04/11/2015)