Esta frase do título, comumente cantada em manifestações feministas, foi escrita no voto do ministro Roberto Barroso divulgado semana passada, que se somou ao voto da ministra Rosa Weber, no Plenário Virtual do Supremo Tribunal Federal, às vésperas de sua aposentadoria. A luta pela descriminalização do aborto na ADPF 442 avança lentamente, mas segue firme, sendo certo que, com o pedido de destaque do ministro Gilmar Mendes, o processo saiu do Plenário Virtual e foi devolvido ao Plenário com dois votos favoráveis.
Após longa espera, tendo em vista que a ação se iniciou em 8/3/2017, e após a realização da importante audiência pública de 2018, chama a atenção o fato de que os dois votos favoráveis até agora foram dados virtualmente, nas últimas horas antes das aposentadorias dos ministros, o que reflete a delicadeza da pauta no Brasil, em especial diante da polarização política, do crescimento da extrema-direita e das disputas entre o Parlamento e o STF.
Em que pese ter o tribunal uma função contramajoritária, marcada pela defesa dos direitos fundamentais, alguns parlamentares conservadores têm pressionado politicamente os ministros por considerarem que o aborto seria um tema exclusivo do Poder Legislativo. Não é, inclusive outros países como México, Colômbia e Alemanha descriminalizaram o aborto pela via do Judiciário.
Sabemos que a pauta do aborto sempre foi instrumentalizada na política, em especial por forças conservadoras e religiosas que, para se fortalecerem eleitoralmente, utilizam-se da estratégia do “pânico moral” e, mediante o uso de redes de difusão de fake news e manipulação, provocam a desinformação sobre um tema que deveria ser tratado como de saúde pública. Afinal, a criminalização do aborto leva ao aumento de mortes maternas, tendo em vista que mulheres realizam a interrupção, mesmo na ilegalidade, e isso faz com que as negras e pobres morram todos os dias por conta do arriscado procedimento realizado à margem da lei.
O voto do ministro Barroso foi objetivo, somando-se ao detalhado voto feminista da ministra Rosa, tendo ele afirmado em seu voto ser o aborto seguro até a 12ª semana um direito fundamental das mulheres e pessoas que gestam diante da Constituição de 1988.
Em oito pontos, sustentou que: 1) “Ninguém é a favor do aborto em si. O papel do Estado e da sociedade é o de evitar que ele aconteça”; 2) “A discussão real não está em ser contra ou a favor do aborto. É definir se a mulher que passa por esse infortúnio deve ser presa”. 3) “A interrupção da gestação deve ser tratada como uma questão de saúde pública, não de direito penal”; 4) “A criminalização não diminui o número de abortos, mas apenas impede que ele seja feito de forma segura”; 5) “A criminalização penaliza, sobretudo, as meninas e mulheres pobres, que não podem recorrer ao sistema público de saúde para obter informações, medicação ou procedimentos adequados”; “Praticamente nenhum país democrático e desenvolvido do mundo adota como política pública a criminalização da interrupção da gestação nas primeiras semanas”, o que inclui 39 países europeus e outros pelo globo e citou Alemanha, Austrália, Canadá, Dinamarca, Espanha, Finlândia, França, Holanda, Itália, Portugal e Reino Unido; 6) “As mulheres são seres livres e iguais, dotadas de autonomia, com autodeterminação para fazerem suas escolhas existenciais”, alertando também para o fato de que os “direitos fundamentais não podem depender da vontade de maiorias políticas”; 7) “sem renunciar a qualquer convicção, é perfeitamente possível ser simultaneamente contra o aborto e contra a criminalização” e, por fim, ele reconhece haver um “desacordo moral” e posições diametralmente opostas sobre a pauta do aborto, mas conclui dizendo que o papel do Estado não é o de escolher um lado e excluir o outro, e sim o de assegurar que cada um possa viver a sua própria convicção”.
É justamente sobre isso que se trata: respeitar a autonomia das mulheres e suas próprias convicções significa dizer que elas devem ter o direito de escolher se querem ser mães ou se desejam recorrer ao seguro procedimento de interrupção voluntária da gravidez até a 12ª semana quando não têm condições ou não desejam ter filhos, procedimento este que deve ser garantido no SUS. É uma questão de saúde pública, não é uma questão criminal, moral ou religiosa.
Mal o voto foi proferido, diversas instituições historicamente contrárias à legalização do aborto se manifestaram. O Instituto Brasileiro de Direito e Religião encaminhou ao ministro Edson Fachin, novo presidente do Supremo Tribunal Federal, um requerimento de anulação do voto favorável de Barroso. Segundo o documento, o voto do ministro aposentado foi proferido com o propósito de impedir que o futuro integrante da corte participe da votação, o que fere o princípio da imparcialidade. Idêntica iniciativa foi tomada em 2023, pela Confederação Nacional de Bispos do Brasil, contra o voto da ministra Rosa Weber. Em agosto de 2024, contudo, o STF manteve o voto nos autos, por entender que a CNBB não tem legitimidade para recorrer na ADPF 442, pois não é parte na ação, apenas amicus curiae. É de se esperar, portanto, que a Corte mantenha o voto do ministro Barroso, pelos mesmos fundamentos.