Sem tempo para Trump, mulheres resistem aos retrocessos no Brasil

04 de fevereiro, 2017

Diante de projetos de lei conservadores no Congresso e dos índices epidêmicos de violência de gênero, brasileiras mobilizam-se nas redes e nas ruas

(CartaCapital, 04/02/2017 – acesse no site de origem)

Um dia após a posse do bilionário republicano Donald Trump como o 45º presidente dos Estados Unidos, um exército feminino de 3,2 milhões de manifestantes, trajando gorros cor-de-rosa, marchou pelas cidades americanas em defesa de seus direitos e de outros grupos minorizados.

Com epicentro em Washington, a Marcha das Mulheres espalhou-se por todos os estados da federação, naquela que é considerada uma das mais expressivas manifestações de massa da história dos EUA. O ato reverberou em ao menos 80 países.

Uma demonstração imediata de descontentamento com o resultado ultraconservador, branco, masculino e, sobretudo, misógino da corrida presidencial.

No Brasil, a adesão foi tímida em comparação a outras marchas-irmãs.

Talvez o relativo silêncio das brasileiras em relação a Trump seja menos um desconhecimento sobre o avanço contra os interesses das mulheres nos Estados Unidos e mais um reflexo dos ataques diários aos direitos delas no Brasil. Aqui, elas convivem com índices epidêmicos de violência de gênero e estão reféns do Congresso mais reacionário desde o fim da ditadura.

“Estamos atônitas com o que ocorre no Brasil. Seria até insensível abraçar a pauta internacional diante de um contexto político nacional tão desconfigurado”, reflete Joanna Burigo, fundadora da Casa da Mãe Joanna Diálogos, mestre em Gênero, Mídia e Cultura pela London School of Economics e colunista de CartaCapital.

A chamada Primavera Feminista no Brasil, que despertou a atenção da mídia a partir de 2013, ampliou os espaços de discussão sobre os direitos da mulher, multiplicou manifestações massivas e culminou na eleição de parlamentares declaradamente feministas nas eleições municipais de 2016. Quando se amplia o quadro, no entanto, o cenário ainda se mostra desafiador.

Segundo dados da União Interparlamentar, o Brasil apresenta uma das taxas mundiais mais baixas de representatividade: só 10% dos integrantes do Congresso são mulheres. Na posição 116º de um total de 190 países, a presença política feminina é inferior à do Oriente Médio, cuja taxa de participação é de 16%.

Apesar de as redes sociais serem vistas como um ambiente de resistência, na maioria das vezes o barulho não encontra ressonância na política institucional.

“Essas vozes não têm sido substancialmente fortes para criar constrangimento para parlamentares ou para o Supremo Tribunal Federal”, analisa Jolúzia Batista, do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (Cfemea), organização não governamental que acompanha desde 1989 as movimentações legislativas em torno dos direitos da mulher.

“Não existe outra opção que não seja a presença nas ruas. Os parlamentares não respeitam nenhum outro parâmetro, nem mesmo a Constituição.”

Antes mesmo da deposição de Dilma Rousseff, a primeira brasileira a chegar à Presidência, o pleito de 2014 elegeu muitos candidatos identificados com pautas religiosas ou de viés moral, com potencial de agressão aos direitos conquistados e à laicidade do Estado.

Passada a mobilização para derrubar a presidenta, a tendência é de que a atenção dos parlamentares reacionários se volte novamente para esse front.

As propostas incluem restrições ao aborto até mesmo em caso de violência sexual, inviabilização de debates sobre a desigualdade entre homens e mulheres nas escolas e a possibilidade de as igrejas proporem ações de inconstitucionalidade no STF, uma flagrante violação ao Estado laico.

Um dos projetos mais preocupantes é o chamado Estatuto do Nascituro (PL nº 478/2007), que ganhou força durante o reinado do deputado cassado Eduardo Cunha (PMDB), ex-presidente da Câmara.

Ao partir do pressuposto de que a vida começa na concepção, a proposta inviabilizaria na prática o aborto legal no País. Atualmente, a interrupção da gravidez é autorizada em caso de estupro, risco à gestante e feto anencéfalo.

Além de prever detenção de seis meses a um ano para quem fizer “apologia do aborto ou incitar publicamente a sua prática”, o Estatuto do Nascituro também estabelece prisão de um a dois anos, acrescida de multa, para quem “induzir” ou “oferecer-lhe ocasião” para que o procedimento seja feito.

A proposta também concede assistência pré-natal, acompanhamento psicológico e ajuda financeira do governo até que a criança seja adotada ou que o estuprador seja localizado e obrigado a pagar pensão. O projeto aguarda parecer do relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara.

Proposto em 2016, outro projeto procura restringir o abortamento, mesmo em casos hoje permitidos pela lei brasileira. Trata-se do PL nº 4.646, que pretende tipificar o crime de “auxílio, induzimento ou instigação” da interrupção da gravidez. Caso seja aprovada, a lei tornaria o aborto um crime hediondo, com pena de até dez anos de reclusão.

Outro fruto das movimentações da bancada evangélica no Congresso, a Proposta de Emenda à Constituição 99/2011 pretende dar às igrejas o poder de questionar leis no STF por meio de uma ação declaratória de inconstitucionalidade. O texto foi aprovado por unanimidade em uma comissão especial da Câmara e seguirá para votação no plenário.

Caso entre em vigor, entidades religiosas poderão acionar a Corte para questionar a constitucionalidade de leis. Atualmente, esse tipo de ação só pode ser proposto por partidos, sindicatos, governadores, pela Procuradoria-Geral da República e pela Ordem dos Advogados do Brasil.

Em outra frente, o “Escola Sem Gênero” (PL nº 7.180/2014) busca sobrepor os “valores de ordem familiar” à escola nos aspectos relacionados à “educação moral, sexual e religiosa”.

No cotidiano escolar, essa proposta se traduziria na interdição de discussões sobre gênero e diversidade e dificultaria ações educativas de combate à homofobia e a promoção da igualdade entre homens e mulheres.

Violência e mobilização 

O avanço sobre os direitos no campo legislativo convive ainda com altos índices de violência contra a mulher, explicitado de maneira extrema em casos como o da Chacina de Campinas, na qual um técnico de laboratório executou a ex-esposa, o filho e outros dez na noite do Réveillon de 2017. Das 12 vítimas, 9 eram mulheres.

Não há dúvidas de que se tratou de um feminicídio, crime no qual as mulheres são mortas em razão do gênero, ou seja, por menosprezo ou discriminação à sua condição de mulher.

Ele viceja, sobretudo, em locais de grande desigualdade de gênero, o que é o caso no Brasil.

O País ocupa o quinto lugar no ranking de 83 nações em número de assassinatos de mulheres, além de registrar um estupro a cada 11 minutos e cinco espancamentos a cada 2. A desigualdade está presente também no dia a dia das brasileiras, que ganham 30% menos do que os homens e realizam três vezes mais trabalhos domésticos do que eles.

Apesar da baixa adesão à Marcha de Washington, as brasileiras estiveram na linha de frente de protestos de rua nos últimos quatro anos. Em 2013, Eduardo Cunha foi eleito o inimigo número 1 das mulheres por conta do PL nº 5.069, que dificultaria o acesso à pílula do dia seguinte.

Em resposta, organizaram-se marchas de “Mulheres contra Cunha” em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. Em 2016, na esteira do brutal estupro coletivo cometido contra uma adolescente carioca e dos altos índices de violência sexual, milhares ocuparam ruas e avenidas contra a chamada “cultura do estupro”.

Diante da multiplicidade de desafios, Joanna advoga pela adoção de mais de uma estratégia de resistência. “As mulheres não são um grupo monolítico, então todas as estratégias são importantes. É importante discutir na internet, mas também são vitais a presença física em protestos e, principalmente, o diálogo constante entre as mulheres”, defende.

Para Jolúzia, do Cfemea, a resposta das mulheres aos políticos precisa ser dada nas ruas. “Recomendo fazer o esforço de estar presente em toda e qualquer manifestação que for chamada em resistência aos retrocessos de direitos. Só assim poderemos fazer uma pressão contundente”, afirma.

PL 5069

A resistência nas ruas brasileiras ganhou força em 2015, durante o reinado de Eduardo Cunha (Foto: Rovena Rosa/ABr)

De Washington a Buenos Aires, as mulheres vão à luta

Nascido da indignação pela vitória de Donald Trump, o levante de mulheres nos Estados Unidos mobilizou desde feministas históricas como Angela Davis e Gloria Steinem até celebridades como Madonna. Milhões marcharam, galvanizadas pela retórica machista e xenofóbica de Trump e pelo temor de retrocessos em direitos como o aborto.

Aos 72 anos, Angela Davis, autora do clássico Mulheres, raça e classe e ícone da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, fez um firme discurso em que afirmou que “nenhum ser humano é ilegal”. 

“Neste momento desafiador de nossa história, vamos nos lembrar que somos centenas de milhares de mulheres, pessoas transgênero, homens e jovens que estamos aqui na Marcha das Mulheres. Nós representamos a poderosa força de mudança que está destinada a impedir que a cultura racista e patriarcal floresça novamente”, discursou.

Sob o guarda-chuva do repúdio ao novo presidente arregimentaram-se também defensores dos direitos das populações negra e muçulmana, de imigrantes e LGBT, alvos frequentes dos comentários negativos do republicano.

“Esta marcha representa a promessa do feminismo contra os poderes perniciosos da violência do Estado. E o feminismo inclusivo e intersetorial que convoca todos nós a juntar-se à resistência ao racismo, à islamofobia, ao anti-semitismo, à misoginia, à exploração capitalista”, afirmou Davis.

“A fim de combater políticas desiguais e injustas, devemos estar preparadas para lutar pelos direitos de todos. Essa marcha foi uma incrível demonstração de democracia, que agora precisa ser seguida por ações concretas”, disse a CartaCapital a americana Jessica V., de 22 anos, uma das 545 mil participantes do ato em Washington.

A efervescência de atos políticos protagonizados por mulheres não é exclusividade dos Estados Unidos. Ao trajar preto em sinal de luto, elas manifestaram-se massivamente na Polônia contra o endurecimento da possibilidade de aborto na legislação. A reação, ocorrida em outubro de 2016, conseguiu frear a iniciativa governamental.

Na Argentina, também de preto, outros milhares realizaram paralisação, seguida de marchas, em reação ao feminicídio da estudante Lucía Perez, de 16 anos, brutalmente estuprada e morta em outubro de 2016.

Além dos protestos contra a violência, em Buenos Aires a mobilização contra o assédio em locais públicos concretizou-se em uma lei, aprovada em 2016, que pune com multa e prestação de serviços comunitários aquele que praticar assédio sexual, verbal ou físico nas ruas.

Tory Oliveira

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