(Rede Feminista de Saúde, 11/08/2015) Um verdadeiro clima de torcidas de futebol instaurou-se no Senado, em 6 de agosto, durante a audiência pública interativa sobre a Sugestão Legislativa (SUG) que regula a interrupção voluntária da gravidez até a décima segunda semana de gestação pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Tanto que o senador João Capiberibe, moderador da mesa, chegou a lembrar o público do auditório que não se tratava de um “fla-flu”, mas de um debate profundo. De um lado, estavam aqueles que se intitulam “pró-vida”, formado por padres e militantes religiosos, de outro, as mulheres de instituições feministas que formam a Frente Nacional pela Legalização do Aborto e tratam o tema como questão de saúde pública e de direitos humanos das mulheres. É a terceira audiência realizada pela Comissão de Direitos Humanos para discutir a proposta de projeto de lei que recebeu mais de 20 mil assinaturas. O próximo debate deverá ocorrer em 24 de setembro.
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A sociedade pôde assistir pela TV Senado ou Internet e participar por meio de perguntas por e-mail. Dois homens e duas mulheres contrários e quatro mulheres favoráveis ao projeto de lei expuseram suas argumentações. A intimidação em tom de cruzadas contra as feministas marcou o início do debate, entretanto o entusiasmo do grupo de religiosos, que estava em grande maioria, foi enfraquecendo paulatinamente diante da fundamentação feita pelas mulheres favoráveis à regulamentação.
Pela legalização, estavam Sônia Corrêa, representante do Observatório de Sexualidade e Política, Tatiana Lionço, Conselheira do Conselho Regional de Psicologia/DF e integrante do Movimento Estratégico pelo Estado Laico, Débora Diniz, professora da Faculdade de Direito da UNB e pesquisadora do Instituto de Bioética e Márcia Tiburi, filósofa e professora da universidade Mackenzie. No lado contrário, falaram David Kyle, o diretor do documentário “Blood Money”, Viviane Petinelli e Silva, representante do Instituto de Políticas Governamentais do Brasil, o padre Paulo Ricardo e a vereadora do PSOL, Heloísa Helena.
O primeiro a falar foi o diretor do documentário panfletário que, segundo a crítica, tratou o tema com parcialidade e recusou o debate profundo. Antes de sua fala, foram exibidos trechos do filme, que reúne depoimentos de padres, médicos e mulheres para satanizar a lei que legalizou a prática nos Estados Unidos há 40 anos. David acusou os programas do país de persuadir mulheres a interromperem a gravidez indesejada e de fomentar a indústria do aborto visando apenas o lucro. Destacou que o aborto traz muitos riscos à mulher, como depressão e suicídio, e que por isso não deveria ser uma opção. “Vocês têm uma oportunidade aqui no Brasil de debater essa questão. Nos EUA tivemos o aborto imposto à sociedade. A verdade é que o aborto é ruim e perigoso. Essa é a Comissão dos Direitos Humanos e o primeiro direito humano é a vida”, afirmou ele defendendo os direitos humanos do feto.
Tatiana Lionço, que devido ao seu posicionamento libertário já foi vítima de campanhas difamatórias pelo deputado Jair Bolsonaro, teve sua fala interrompida pelos religiosos que não paravam de fazer piadas. “O riso é livre”, gritou um deles. “Milhares de mulheres recorrem ao aborto no Brasil. Não se trata de ideologia, mas sim de um fato social. É absurdo e nocivo o tratamento dado às mulheres pelos parlamentares brasileiros. É muito grave o processo de criminalização contra o ativismo político, como a CPI do Aborto, que reduz a luta feminista a crime. Por nós, pelas outras e por mim, espero que possamos chegar a um marco legal justo, considerando toda a pluralidade do conjunto da sociedade”, afirmou ela, mesmo diante das tentativas de intimidação. Um dos jovens religiosos, com cerca de 20 anos, bravejou: “o estado é laico, mas não é ateu.”
Mulheres comuns fazem aborto
Débora Diniz pediu tranquilidade para tratar o tema e recorreu às pesquisas para embasar a defesa da legalização: uma em cada cinco mulheres já realizou pelo menos um aborto até os 40 anos. No Brasil, sete milhões e 400 mil mulheres, entre 18 e 39 anos, já realizaram o procedimento em algum momento da vida. “Essas mulheres deveriam estar no sistema penal brasileiro. É disso que estamos falando aqui”, afirmou. Segundo ela, a criminalização da prática faz do aborto uma questão de calamidade pública, visto que 50% das que abortam “finalizam” o procedimento no hospital público, onde “algumas morrem, outras sangram”. “Elas aprendem a regra do silêncio, a desconfiar de quem deveria protegê-las: os seres de jaleco branco ou os homens de batina preta”, pontuou ao detalhar o itinerário das mulheres que abortam no Brasil e não podem contar com o serviço público e muito menos com a igreja.
Segundo ela, as mulheres que abortam são “comuns”, têm filhos, companheiros e religião. Entretanto, para os que defendem a vida do embrião, o aborto é prática somente da outra: a puta, a adolescente, facilmente taxadas de inconsequentes, irresponsáveis e de sexualidade frívola. “Não estamos falando aqui de infanticídio, mas de um embrião até as 12 semanas no útero de uma mulher: a puta, a adolescente, essas que povoam o imaginário desses contrários à legalização. A mulher comum, a adolescente e a puta são todas mulheres comuns. Fiz uma falsa classificação somente para provocar o absurdo dos nossos regimes de julgamento moral. O aborto fala de nós, de vocês, mulheres comuns. Falar de aborto é falar de uma necessidade de saúde da mulher. É a lei penal que mata, interna e sangra essas mulheres”, finalizou.
Regulamentação como democracia
Sônia tratou o aborto como questão de democracia e defendeu que o debate sobre o tema é um caminho para o aprofundamento do sistema democrático no país e que a consolidação deste direito humano das mulheres está relacionada à existência e aprimoramento do Estado de Direito. Segundo ela, a perspectiva feminista que reivindica os direitos humanos das mulheres repudia as leis e políticas compulsórias do aborto, assim como medidas estatais que coagem as mulheres à procriação compulsória. Sônia explicou que a igualdade entre os gêneros é reconhecida como um forte indicador de desenvolvimento humano e democrático.
Ela traçou uma linha histórica para evidenciar que a lei penal não acompanhou os avanços da sociedade nos direitos às mulheres. No início do século 20, quando as leis que criminalizam o aborto foram adotadas, as mulheres estavam excluídas dos direitos de cidadania. Nos anos 30 e 40 foram reconhecidos os direitos ao voto e ao trabalho, porém as restrições reprodutivas foram mantidas. “A restrição coíbe participação plena das mulheres na sociedade e causa um déficit democrático. Esse não é um debate trivial, exige respeito e abertura ao diálogo”, afirmou.
A falsa dualidade “pró-vida x pró-aborto”
Para vencer a dualidade entre pró-vida e pró-aborto, Márcia Tiburi fez uma análise filosófica sobre o que chamou de discurso “cínico da dominação machista” que sustenta a ilegalidade da prática. “Aborta-se as mulheres para que elas não abortem”, afirmou referindo à alienação das mulheres sobre seu próprio corpo, proposta em um pseudo-debate. “Dificilmente alguém se afirmará favorável ao aborto em si (…). A assimetria entre defesa do aborto e defesa da legalização do aborto é a questão que precisa ser revista para não cairmos na simples defesa da ilegalidade. Portanto, é a sustentação da ilegalidade promovida pelos sacerdotes da moral o que devemos questionar hoje”, propôs.
Márcia afirmou que a questão do aborto está “enredada no círculo cínico da estrutura social machista sociedade”, cuja principal característica é um acordo de fingimento entre enganados, aqueles que fingem não fazer, e enganadores, aqueles que falam contra. “Todos sabemos que mulheres de todas as classes sociais, idades e, inclusive, credos, fazem abortos, e muitas fingem não fazer, pois o ônus da verdade é muitas vezes impagável”, afirma.
Ela citou ainda as falácias mantenedoras do círculo cínico, por meio das quais se consegue o lucro moral, destacando como mais importante a falácia da ordem do discurso. “Em um país de pessoas analfabetas, inclusive as mulheres, e de corrupção desmedida, em termos morais, estão garantidos os votos, o dízimo e o consumo em geral”, afirmou a filósofa causando desconforto e vaias pela torcida contrária.
Adoção como solução
A representante do Instituto de Políticas Governamentais do Brasil, Viviane Petinelli e Silva, convidou o público a refletir sobre os impactos sociais e econômicos da regulamentação para as instituições, entre eles o desembolso anual pelo Estado de R$ 510 milhões para o procedimento, o equivalente a 3% do orçamento do Ministério da Saúde, enquanto o programa Rede Cegonha dispõe de apenas R$290 mil. A representante defendeu que a legalização não trará resultados “positivos” para a sociedade e que, entre outras consequências, irá prejudicar o bônus demográfico vivido pelo país – de ápice da população ativa – e que as mulheres iriam “colher as consequências” mais tarde, quando precisassem do sistema previdenciário.
Ao final, ela deu a receita pronta para a questão: investir o recurso que se destinaria ao procedimento no SUS em educação de adolescentes e jovens, em centros de adoção e apoio à mulher com gravidez indesejada e em programas de planejamento familiar. Em última instância, no caso de todas as tentativas de educação e métodos falharem, sugeriu a entrega dos filhos para a adoção. “Essa é a saída para não prejudicar social e economicamente o nosso país. A gravidez indesejada é o problema que se resolve com planejamento familiar e educação sexual. Hoje, eu represento 35 mil pessoas que assinaram o abaixo-assinado em favor da vida. Nós queremos sim nossas mulheres vivas, mas também queremos nossas crianças vivas”, finalizou ela, que começou falando em números.
Questão de saúde pública é contestada
Heloísa Helena iniciou sua fala dizendo que tem posição contrária à de Viviane, em relação aos aspectos econômicos, entretanto concorda com a não ampliação da legalização do aborto. Para ela, tratar o aborto provocado como um problema grave de saúde pública é “cinismo, demagogia e malabarismo técnico”. Isso porque, segundo ela, são registrados anualmente apenas cerca de 140 casos de morte por aborto provocado, equivalente a 0.03% dos óbitos de mulheres no Brasil, sendo 1610 maternas e 470.835 no total. “Não estou discutindo religião, até porque o fanatismo, seja das religiões ou ateísmo, promoveu histórias lamentáveis. O debate é sobre essa coisa maravilhosa que é a vida humana. Não adianta debater prazos, essa vida humana intra-uterina não pode ser deixada de lado diante de nove meses de existência de uma mulher adulta. No Brasil, existem mecanismos objetivos que não obrigam a mulher a amar e a criar”, afirmou.
Estado laico é maracutaia para padre
“Eu gostaria que vocês abstraíssem a batina de quem vos fala. Estou aqui como cidadão brasileiro, não para ler a bíblia e o catecismo, mas para argumentar racionalmente como todos nós seres humanos racionais, pelo bem e futuro do país”, assim iniciou sua fala o padre Paulo Ricardo em resposta à provocação feita pela pesquisadora Débora. Ele disse que as defensoras da legalização estão sendo manipuladas pelas fundações internacionais e as convidou para se integrarem aos “pró-vida”. Assinalou ainda que a busca pela regulamentação depois dos anos 70 pelas fundações trata-se de “engenharia social” e que os dados do SUS indicam apenas R$ 100 mil procedimentos de curetagem ao ano. “Importante entender, desculpe Dra. Débora, não se trata de embrião, mas de um feto plenamente desenvolvido. Não é uma bola de sangue, é um ser humano”, afirma.
Segundo ele, o investimento de fundações, como a Ford, em legalização do aborto, nas décadas de 50 e 60 tem origem na preocupação com o crescimento populacional e não com os direitos das mulheres. Afirmou que os fundadores revelaram em um relatório que investiam errado em questões médicas e passaram a investir em sociologia para moldar o comportamento das pessoas. “Basta ler os relatórios das fundações internacionais, não estou falando de catecismo, mas de documentos e não me venham com nhenhenhém de laicidade do Estado, porque isso é maracutaia”, finalizou o padre, “representante de uma das mais poderosas, ricas e manipuladoras fundações internacionais da história, o Vaticano” (como analisou Lola em seu Blog Lola Escreva).
As contradições dos “pró-vida”
Depois da exposição da mesa, a fala foi dada aos parlamentares que se posicionaram contra a regulamentação. O deputado federal Marco Feliciano (PSC-SP), repetindo a mesma fala feita na segunda audiência, lembrou que foi vítima de uma tentativa de aborto e que sua mãe, na época dona de uma clínica clandestina, tem problemas psicológicos até hoje em função disso.
O único que saiu em defesa do projeto foi Jean Wyllys (PSOL-RJ) que, contrariando sua colega Heloísa Helena, tratou a questão como saúde pública e afirmou que o partido já decidiu apoiar a legalização. “A sociedade quer tutelar e legislar sobre o corpo da mulher. Vocês gostem ou não, as mulheres continuam a recorrer ao aborto. Não há Estado que impeça. Essas mulheres são casadas e excelentes mães. A grande maioria pobre e negra. Os parlamentares ‘pró-vida’ homens usam muita energia para tutelar o corpo da mulher e pouca contra a cultura de morte da homofobia, da indústria armamentista e da desigualdade social”, afirmou o legislador.
Ao final da audiência, o deputado questionou o padre Paulo Ricardo em tom de ironia: “o senhor continua explorando crianças, deixando elas no sol segurando placa anti-aborto?”.
Por Paula Guimarães
Mais sobre a audiência e as tentativas de intimidação contra as feministas:
A experiência de uma audiência sobre aborto no senado, por Jarid Arraes (Portal Fórum, 06/08/2015)
Sugestão legislativa retoma a pauta sobre aborto no Senado (GGN, 07/08/2015)
Percepções minhas sobre audiência no Senado sobre aborto (Escreva Lola escreva, 07/08/2015)
O Círculo Cínico e as Falácias sobre a Legalização do Aborto (Revista Cult, 06/08/2015)
Um duelo sobre aborto no Senado (Território de Maíra/CartaCapital, 06/08/2015)
Acesse no site de origem: Senado discute ampliação do direito ao aborto pelo SUS (Rede Feminista de Saúde, 11/08/2015)