Sou mãe e fiz um aborto

09 de maio, 2025 Portal Catarinas Por Kelly Ribeiro

Mães entrevistadas pelo Catarinas compartilham suas vivências e defendem o acesso ao direito sem restrições. Para elas, o aborto não nega a maternidade, pelo contrário, pode ser um caminho para que ela seja vivida com mais responsabilidade e cuidado.

“Quando a gente defende o direito ao aborto, defendemos também o direito de maternar quando estivermos prontas para isso porque é um desafio muito grande. Não existe instinto materno”. A fala de Maria Carolina*, 28 anos, mãe solo de uma menina de quatro, que vive em Curitiba (PR), resume o sentimento de outras mulheres ouvidas nesta reportagem: mães que passaram por abortos e que defendem esse direito por conhecerem de perto a entrega que a maternidade exige.

A decisão, longe de ser tomada de forma leviana, é descrita como difícil, solitária e, muitas vezes, atravessada pelo peso moral que a sociedade impõe às mulheres e pessoas que gestam. São relatos que revelam como, para elas, o aborto também está ligado ao exercício de uma maternidade responsável e cuidadosa.

No Brasil, o aborto é legal apenas em três situações: quando há risco de vida para a gestante, em casos de estupro e em diagnósticos de anencefalia fetal. Fora dessas exceções, a criminalização e o estigma dificultam o acesso a informações, silenciam experiências e isolam quem precisa decidir sobre o futuro do próprio corpo e da própria vida.

Das cinco mulheres entrevistadas, quatro já passaram pelo procedimento e optaram por não se identificar. Todas as demais informações atribuídas a elas foram mantidas.

Sem arrependimentos

Madalena* tinha acabado de entrar na universidade quando decidiu fazer um aborto, aos 20 anos. A gravidez foi resultado de uma relação casual, com alguém que ela não tinha envolvimento afetivo. Aos 57, ela lembra que nunca teve dúvidas sobre a decisão. “Não é algo que alguém faça com alegria, mas eu sabia que era o caminho certo. Nunca me arrependi, nem na época, nem depois”, afirma.

Para realizar o procedimento, recorreu a uma pequena herança deixada pelo pai, recém falecido, e contou com o apoio da irmã, que conhecia uma clínica clandestina em São Paulo, seu estado de origem. “Não era daquelas caras e chiques, mas mesmo assim o preço não era muito acessível. Foi em 1987, em uma época de inflação altíssima e troca de moedas”. Além da irmã, ela contou com o apoio de uma rede de mulheres próximas que já haviam passado por experiências semelhantes.

“Foi tudo muito escondido. Era uma casa no subsolo. A sensação era de que, a qualquer momento, a polícia poderia invadir, mesmo ciente que as autoridades geralmente sabem da existência desses lugares. Foi bem bizarro”, relembra a autônoma, moradora de Natal (RN).

Hoje, mãe de uma jovem de 22 anos, ela conta que já perdeu uma filha que nasceu prematura e não sobreviveu, um episódio que escancara como o moralismo cristão e a lógica patriarcal continuam a moldar, julgar e controlar as experiências mais íntimas das mulheres e pessoas que gestam. Em vez de acolhimento, ouviu que aquilo seria um castigo por ter feito um aborto anteriormente.

“Na época, chegaram a me dizer que isso foi um castigo, porque eu já tinha feito um aborto antes. Isso tem muito a ver com essa visão religiosa das coisas, né? O que, pra mim, não faz o menor sentido, porque eu não sou religiosa. Mas é muito pesado para quem acredita”, conta.

Ao reduzir a dor de uma perda a uma suposta punição divina, esse discurso não só desumaniza, como também reforça a ideia de que mulheres que decidem interromper uma gravidez merecem sofrer. Uma forma perversa de violência simbólica — e uma estratégia de controle.

Apesar disso, a convicção de que fez a escolha certa naquele momento e de que o direito ao aborto deve ser garantido a todas as mulheres permanece intacta.

“É óbvio que deve ser um direito. Eu amo ser mãe. Mas ser mãe muda a sua vida. É responsabilidade, é tudo. Não tem nenhum argumento que me faça pensar: ‘nossa, mas será?’. Pra mim é óbvio. Não tem nada que me diga o contrário”, defende.

Mais de três décadas depois, as dificuldades para realizar o procedimento de maneira segura continuam praticamente as mesmas, como destaca a jornalista e doula Janaína Lacerda, 40 anos, de Jacareí (SP). “Muitas mulheres acabam recorrendo aos meios que disponíveis, se arriscando. Sempre digo que acaba sendo uma questão de sorte. Não temos um sistema de saúde ou uma legislação que garanta o direito de escolha sobre o nosso corpo”.

Mãe de duas meninas, de 12 e 9 anos, ela conta que ambas as gestações foram desejadas e que nunca passou por aborto, mas já foi procurada por jovens em busca de orientação após o uso de medicamentos abortivos. Nessas situações, oferece informações sobre os riscos envolvidos, buscando garantir que a decisão seja tomada a partir dali de forma consciente. Embora não atue mais como doula, ela continua engajada em grupos de educação perinatal e coordena encontros na região voltados à preparação das famílias para a gestação, o parto e a parentalidade.

“Não temos a proteção de poder escolher e contar com uma assistência humanizada e sensível nesse momento. Por isso, acabamos nos apoiando numa rede independente de mulheres. Sempre que algum caso acontece e chega até nós, tem uma amiga junto, alguém por perto oferecendo apoio. São, quase sempre, mulheres ajudando outras mulheres. É muito injusto que as decisões sobre isso estejam nas mãos, em sua maioria, de homens”, lamenta.

Grupos feministas ajudam a realizar o procedimento

Foi justamente uma rede de apoio entre mulheres que ajudou a assessora política Maria Carolina. No fim de 2024, ela engravidou em uma situação marcada por violência. O homem com quem ela teve relações sexuais retirou a camisinha durante o ato sem que ela percebesse, só notou no final. Ela tomou a pílula do dia seguinte, no entanto o método falhou.

A retirada da camisinha sem consentimento é uma prática chamada de stealthing, termo que significa “furtivo” em português. Embora ainda não seja tipificada como crime no Brasil, ela tem sido cada vez mais reconhecida como uma forma de violência sexual. Em março deste ano, por exemplo, o Tribunal de Justiça de São Paulo determinou, em caráter liminar, que o Centro de Referência da Saúde da Mulher realize abortos legais em vítimas dessa violação. A Secretaria Estadual de Saúde, responsável pela unidade, estaria se recusando a realizar o procedimento em mulheres que relataram o ocorrido.

Após confirmar a gravidez, Maria Carolina procurou um grupo feminista que conheceu anos depois do nascimento da filha. “É um grupo de resistência que ajuda mulheres a abortar”. O primeiro contato foi feito por e-mail, e todo o atendimento ocorreu de forma online. Uma voluntária foi designada para acompanhá-la por meio de um aplicativo de mensagens considerado seguro.

“Elas enviam os medicamentos gratuitamente e, quando a mulher não tem recursos, também custeiam o exame de ultrassom para determinar o tempo de gestação. No meu caso, elas acompanharam todo o processo à distância”, explica.

Apesar do suporte do grupo, ela viveu a experiência praticamente sozinha. Maria Carolina conta que mora com a irmã, que ela considera conservadora, e preferiu não revelar a decisão. “Fiz o procedimento de madrugada, no meu quarto. Minha irmã estava dormindo no outro cômodo. Só contei depois, quando percebi que não tinha expelido o feto.”

Depois que uma ultrassonografia indicou a morte fetal, o grupo lhe orientou a aguardar a expulsão espontânea do feto ou procurar atendimento de emergência, alegando um aborto natural. Ela optou por esperar, mas, com o agravamento do quadro, com dores intensas e cólicas fortes, percebeu que precisava ir ao hospital. Lá realizou a curetagem, e recebeu alta dias depois.

“A gente sabe o que está em jogo. Ou a mulher vira mãe de uma criança indesejada, sem ter estrutura psicológica ou financeira, ou arrisca a própria vida num aborto inseguro. É um limite muito cruel. Por isso, até hoje, eu ajudo esse grupo. Porque essas mulheres são muito corajosas. E a gente precisa de pessoas com coragem para ajudar outras mulheres quando elas mais precisam”, ressalta a assessora.

Maria Carolina já tinha tentado interromper a primeira gravidez, aos 22 anos. Ela estava no início da vida acadêmica e, apesar de viver um relacionamento estável, sentia que “não era o momento”. O procedimento não deu certo e ela teve a filha.

Diante de uma nova gestação indesejada, ano passado, não teve dúvidas. Decidiu abortar, mas, dessa vez, foi tomada pelo sentimento de apreensão.

“Eu senti isso porque sou mãe. ‘Se eu morrer nesse procedimento, quem vai cuidar da minha filha?’ Fiquei com essa preocupação. Que ingrato que a gente ainda precise ter tanto medo de decidir o nosso destino”, diz.

Experiências marcadas por negligência médica

Outras entrevistadas relatam episódios de negligência em ambientes hospitalares. É o caso da empresária Heloísa*, 45 anos, de Curitiba (PR), mãe de duas meninas, de 17 e 12 anos, e de um menino de 3. Ela passou por três abortos, sendo o primeiro espontâneo e profundamente traumático. Na ocasião, percebeu que as profissionais que a atenderam suspeitavam que ela mesma tivesse provocado a interrupção da gestação.

“As enfermeiras me trataram com frieza, quase sem falar comigo. Fiquei 12 horas em jejum, sangrando, sozinha, sem celular, sem ninguém por perto e sem poder pedir nada. Nem comer eu podia. Me colocaram ao lado de uma mulher em trabalho de parto. Foi de uma grosseria absurda. Depois dessa experiência, [quando engravidou novamente] decidi que não teria minha filha no hospital”, conta.

A história de Angela*, de 30 anos, também exemplifica como o sistema de saúde falha em acolher mulheres em momentos de extrema vulnerabilidade. Ao tentar interromper uma gravidez aos 21 anos, com medicamento de procedência duvidosa, ela realizou o procedimento sozinha na casa da mãe. “Meu companheiro não pôde estar comigo. Minha mãe sabia, mas foi clara: ‘Não vou te impedir, mas também não vou te ajudar’.”, lembra. “Eventualmente, comecei a sangrar bastante, entrei em pânico e tomei o remédio para parar o sangramento antes da hora”.

Após buscar ajuda em um hospital da rede pública, no Rio de Janeiro (RJ), relata ter sido tratada com indiferença.

“O tratamento para quem está sofrendo um aborto, seja ele espontâneo ou não, é bizarro. Não me agrediram diretamente, mas havia uma indiferença total. Era como se eu fosse só mais uma com sangramento chegando ali.”

A gestação, mantida após a tentativa frustrada, foi difícil desde o início. Na clínica da família onde fazia pré-natal, exames indicaram infecção urinária já no primeiro trimestre, mas os sinais foram ignorados. “Hoje, com o conhecimento que tenho, vejo como era simples tratar uma infecção urinária em uma gestante.”

Próximo do parto, procurou uma emergência com sangramento e contrações, e novamente os profissionais minimizaram os sintomas. Três dias depois, entrou em trabalho de parto prematuro. Foi internada e passou por uma indução com misoprostol — o mesmo medicamento que tentou comprar para realizar o aborto — e deu à luz sua filha com apenas 32 semanas e 6 dias de gestação. A bebê nasceu com 1,660 kg e foi internada na UTI com um quadro grave de sepse, uma infecção generalizada. Angela também desenvolveu uma infecção uterina severa, tratada com antibióticos intravenosos por dez dias.

Os casos ilustram como a criminalização do aborto impede o acesso a orientação segura, atendimento humanizado e suporte emocional, independentemente de terem provocado ou não a interrupção da gestação. Além disso, sobrecarrega o sistema de saúde com emergências que poderiam ser evitadas, caso o aborto fosse garantido de forma legal, segura e gratuita para todas as mulheres e pessoas que gestam.

Acesse a entrevista no site de origem.

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