(Opinião e Notícia, 12/01/2016) A explosão de fetos com má-formação cerebral pode aumentar o número de abortos ilegais no país
O aumento dos casos de microcefalia em recém-nascidos, associado ao surto de zika vírus, pode agravar uma realidade brasileira preocupante: o número de abortos clandestinos realizados no país.
Leia também: Brasil tem mais de 3.500 casos suspeitos de microcefalia associada ao vírus Zika (Agência Brasil, 12/01/2016)
O aborto é permitido no Brasil apenas em casos de estupro, risco de vida à mãe e gravidez de anencéfalos — fetos sem cérebro que não sobrevivem fora do útero. A zika é uma doença tropical de origem africana pouco estudada, semelhante à dengue, que chegou ao Brasil em meados de 2015, desencadeando uma explosão de bebês nascidos com microcefalia, uma má-formação cerebral grave, rara e incurável, mas não incompatível com a vida.
Sem literatura científica ou experiência prévia para guiar os esforços de pesquisa, o Brasil tateia à procura do mecanismo de ação ligando o zika à microcefalia. O que se sabe, até agora, explica a virologista Claudia Nunes Duarte dos Santos, chefe do departamento de virologia molecular do Instituto Carlos Chagas, um dos laboratórios de referência para casos da doença no Brasil, é que existe uma ligação inquestionável entre a microcefalia dos bebês e o zika vírus contraído por gestantes durante os primeiros meses de gravidez.
“Temos hoje dados em laboratório que, de forma inconteste, indicam o zika vírus passando pela placenta e infectando células da placenta”, diz Claudia. “O mecanismo de ação, ou seja, como ele passa e causa a microcefalia, se é ele em si ou algum anticorpo ou célula, isso não é conhecido ainda. Mas a associação é inquestionável.”
De acordo com o último boletim epidemiológico do Ministério da Saúde divulgado em 5 de janeiro, o país registrou 3.174 casos de microcefalia em recém-nascidos de 684 municípios de 21 estados no período entre 22 de outubro e 02 de janeiro, frente à 147 casos notificados em 2014. O Ministério da Saúde também investiga 38 óbitos de bebês com microcefalia que morreram após o parto.
Microcefalia: a ponta do iceberg
A microcefalia não é a única doença associada ao zika. Um artigo publicado na última quinta-feira, 7, na revista científica Lancet, relatou lesões oculares em três bebês brasileiros com suspeita de microcefalia causada pelo zika vírus. Há relatos de bebês apresentando outras deficiências também, como dilatação dos ventrículos e calcificações no cérebro, detectáveis intrauterinamente. Claudia não descarta a possibilidade de que essas sequelas levem a um aumento no número de abortos inseguros praticados no país.
“O aborto é ilegal no Brasil, mas imagine o impacto que isso pode ter no aumento de casos de abortos clandestinos, quando as pessoas souberem que estão carregando um feto com uma má-formação gravíssima. Imagine o desdobramento que isso pode ter.”
A médica Maria Angela Rocha é coordenadora do setor de infectologia pediátrica do Hospital Universitário Oswaldo Cruz (HUOC), em Recife, que tem concentrado o maior número de atendimentos a bebês com microcefalia em Pernambuco, estado com o maior número de casos da doença (37% do total). Angela, que conversou com o O&N sobre a situação da microcefalia no estado, disse não acreditar no aumento das taxas de aborto, uma vez que muitas mães, em especial aquelas atendidas em hospitais públicos, só descobrem a má-formação após o parto.
A normatização do SUS para pré-natal estabelece uma ultrassonografia morfológica nas primeiras semanas de gestação e depois não a repete, explica a pediatra. Entretanto, só é possível comprovar o diagnóstico da microcefalia, geralmente, a partir da 32ª semana de gestação.
“A microcefaila só é comprovada a partir do sexto mês de gestação, e quem nessa idade gestacional vai pensar em abortar?”, diz. “Não estamos colocando isso como uma possibilidade”.
Mas a realidade parece ser outra. Entrevistados pela Folha, obstetras particulares de Pernambuco, Bahia e Paraíba relataram casos recentes de pacientes que optaram pelo aborto após um ultrassom morfológico diagnosticar graves lesões cerebrais no feto. Segundo especialistas entrevistados pela reportagem, o fenômeno vai alimentar o debate sobre a ampliação do aborto legal no país.
O genoma do zika vírus no Brasil
O zika que circula no Brasil, transmitido pelo mosquito Aedes aegypti, o mesmo da dengue e da chicungunya, é igual à cepa asiática do vírus que provocou uma epidemia na Polinésia Francesa entre 2013 e 2014. Com uma população de pouco mais de 230 mil habitantes, a Polinésia Francesa, um arquipélago isolado no Pacífico, registrou mais de cinco mil casos de zika e pelo menos 17 de microcefalia em recém-nascidos, à época. Como a Polinésia Francesa é um departamento francês, onde o aborto é permitido, algumas gestantes infectadas pelo zika durante o primeiro trimestre da gravidez optaram pelo aborto. De acordo com Pierre-Henri Mallet, médico responsável pela vigilância sanitária do Departamento da Saúde na Polinésia Francesa, foram realizados pelo menos 18 abortos de fetos com microcefalia no país durante a epidemia.
Por ora, ainda não há um teste rápido para confirmar o diagnóstico do zika, mas pesquisadores senegaleses que atuaram no combate ao vírus ebola no continente africano chegaram ao Brasil na semana passada com esse objetivo em mente: ajudar os pesquisadores brasileiros a desenvolver um teste capaz de confirmar a presença do vírus em amostras de saliva ou de sangue em poucos minutos
Com ou sem o teste rápido, a previsão é que o número de infecções no país aumente muito no próximo ano. “O país convive com surtos de dengue há 30 anos sem conseguir produzir avanços significativos no combate à doença”, lembra Claudia. “Hoje já são 1,7 milhão de casos de dengue notificados. Não gosto de ser pessimista, mas se você pensar no número de casos de zika que temos hoje e que estão aumentando de forma muito significativa, e pensar na quantidade de mosquitos que temos, a tendência é que essa epidemia cresça muito no próximo ano. Se fizermos uma matemática simples, pegando o número de nascimentos no Brasil por ano, o número de municípios com infestação e o número de municípios com zika, vamos perceber que a tendência é que o surto aumente muito. Temos 3 mil casos de microcefalia agora. Imagine o que vai ser. Multiplique por dez”, diz.
Segundo uma pesquisa feita por professores da Universidade de Brasília em 2010, mas que ainda serve como referência para a Organização Mundial da Saúde, uma em cada cinco brasileiras de até 40 anos de idade já fez pelo menos um aborto ilegal. A prática é a quinta causa de morte materna no país.
Joana Duarte
Acesse no site de origem: Surto de microcefalia vai agravar a realidade do aborto clandestino? (Opinião e Notícia, 12/01/2016)