Vereadores pelo país tentam barrar o acesso ao aborto legal

Manifestantes contra o PL da gravidez precoce se reúnem no Masp

São Paulo – SP 23/06/202 Ato no MASP contra o Projeto de Lei (PL) 1.904/24, que equipara o aborto de gestação acima de 22 semanas ao homicídio. Foto: Paulo Pinto/Agencia Brasil

14 de março, 2025 AzMina Por Maria Paula Monteiro

Levantamento aponta projetos idênticos apresentados em diferentes cidades; Rio de Janeiro, Fortaleza e São Paulo são as capitais campeãs em propostas

As cidades brasileiras têm sido um terreno fértil para a atuação de parlamentares que querem restringir o acesso ao aborto legal. Ainda que seja uma pauta de competência federativa, vereadores de extrema direita se articulam, usam seus mandatos e gastam dinheiro público para produzir e replicar projetos de lei inconstitucionais sobre direitos reprodutivos.

Foram apresentados 103 projetos de lei sobre os temas aborto ou nascituro em Câmaras Municipais das capitais, entre 2017 e 2024, período que corresponde às últimas duas legislaturas. O levantamento foi feito pela reportagem nas câmaras municipais das capitais do Brasil em janeiro deste ano.

A campeã é a cidade do Rio de Janeiro, com 15 propostas apresentadas em 8 anos, seguida por Fortaleza, com 13 projetos, e São Paulo, com 11. A capital paulista é a única dentre elas onde o número de matérias que buscam garantir o direito ao aborto legal (oito) – supera as que querem restringir o direito (três).

O ano de 2023 registrou o  maior número de projetos de lei sobre o tema apresentados nas capitais dentro do período analisado, com 26 matérias. Destas, 22 têm o objetivo de restringir o acesso à interrupção legal da gestação.

Redes de articulação antigênero

Em um movimento que especialistas chamam de ofensiva antigênero, projetos de lei buscam estabelecer uma série de exigências para acessar o serviço legal de interrupção da gestação.

Nos últimos 8 anos, vereadores de São Paulo (SP), Belo Horizonte (MG), Rio de Janeiro (RJ), Recife (PE) e João Pessoa (PB) propuseram que pessoas que buscam realizar um aborto legal fossem obrigadas a ouvir batimentos cardíacos do feto, receber informações falsas sobre supostos efeitos colaterais e psíquicos de um aborto ou se submeter a demonstrações de como um feto é extraído do ventre da mãe. Na capital paraibana, um projeto com propostas similares se tornou lei em 2024.

A imposição de tais procedimentos, além de poder ser equiparada à tortura, viola um marco internacional do Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas, explica Mariana Paris, advogada do Anis Instituto de Bioética. Trata-se do caso K.L. vs. Peru, em que o Comitê afirmou que obrigar uma pessoa com risco à saúde a levar adiante uma gestação é uma forma de tortura. O país foi obrigado a pagar uma reparação à vítima.

A advogada indica que projetos que visam cercear o aborto e tramitam em âmbito federal são replicados nos legislativos de estados e municípios, com uma maior chance de aprovação. Entre 2023 e 2024, cinco capitais brasileiras protocolaram projeto de lei que busca notificar procedimentos de aborto realizados no município às secretarias de saúde ou à polícia, com textos idênticos ou similares: Belo Horizonte (MG), Rio de Janeiro (RJ), Maceió (AL), João Pessoa (PB) e Fotaleza (CE).

Na capital mineira, a proposta é de autoria da vereadora reeleita Flávia Borja (DC) e se tornou lei no último ano. A legislação estabelece que as notificações devem ser publicadas no Diário Oficial do município, indicando a razão do procedimento, faixa etária e raça da pessoa gestante.

Cidades do interior

O projeto sobre a notificação dos procedimentos de aborto às secretarias de saúde também tramita em cidades do interior do país, como é o caso de Uberlândia (MG), Niterói (RJ), Rio Grande (RS) e Sete Lagoas (MG). A última cidade nem mesmo dispõe do serviço de interrupção legal da gestação nos equipamentos de saúde municipais.

Uma proposta similar tramita no Congresso Nacional. O PL 1152/24, apresentado em abril de 2024 e de autoria do deputado federal Messias Donato (Republicanos-ES), exige não só que procedimentos de aborto sejam notificados ao Ministério da Saúde, mas também a divulgação de um relatório mensal contendo tempo gestacional em cada procedimento, idade da pessoa gestante e o CRM do médico responsável pelo atendimento. O projeto de lei já recebeu parecer favorável pela Comissão de Saúde e aguarda parecer da Comissão de Constituição e Justiça.

Para Camila Galetti, doutora em sociologia pela UnB, uma explicação possível para a articulação de vereadores em tantas cidades distintas pode estar nos grupos de formação política organizados por lideranças da extrema direita. Além disso, “em nível nacional, a maioria dos conselheiros tutelares são de extrema direita”, diz. “Pelas beiradas, essas pessoas estão capturando tudo que perpassa a pauta da infância e dos direitos reprodutivos”, completa Camila.

Interferir na atuação dos profissionais

Ainda que sejam projetos que “extrapolam as funções do legislativo municipal e afrontam a legislação federal”, Mariana Paris, advogada do Anis, alerta que as iniciativas não são inofensivas. A insegurança jurídica para que profissionais de saúde atuem em situações de aborto legal é uma das consequências da tramitação desses projetos, segundo a advogada.

“São iniciativas que oferecem muitos obstáculos ao aborto legal por, principalmente, aumentar o estigma e interferir na atuação desses profissionais, levando, inclusive, a perseguições”, explica.

O aborto é legal no Brasil em três situações: em caso de risco de morte da gestante; para gestações decorrentes de violência sexual; e em diagnóstico de anencefalia do feto. Mas, de acordo com dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde, do Ministério da Saúde, o serviço de interrupção legal da gestação é oferecido somente em 2% dos municípios.

O baixo número de hospitais com o serviço não é o único obstáculo. Para  Rebeca Mendes, advogada e fundadora do Projeto Vivas, a criação de leis municipais que buscam dificultar o acesso ao aborto são a “cereja no bolo”. A ativista acompanha mulheres que têm sido denunciadas para a polícia pelo próprio hospital após a interrupção legal da gestação. “A legislação vem apenas para institucionalizar o que já acontece. Na prática, esses projetos de lei já existem”, diz.

O Projeto Vivas garante o acesso ao aborto legal no Brasil e em outros países da América Latina. Organizações com esse tipo de atuação também se tornam alvo de parlamentares da extrema direita. Em uma tentativa de perseguir e enfraquecer esses grupos, o projeto de lei nº 3088/2024, de autoria do vereador carioca Carlos Bolsonaro (PL), busca proibir apoio institucional ou financeiro da Prefeitura do Rio de Janeiro às organizações que defendem “pautas identitárias” ou aborto legal.

Homens apresentaram maioria dos projetos

Parlamentares homens são responsáveis por 76% dos 69 projetos de lei antiaborto em Câmaras Municipais das capitais brasileiras. Por outro lado, as vereadoras mulheres são responsáveis por 68% das 34 propostas que buscam proteger o acesso ao aborto legal.

Conforme o levantamento da reportagem, 67% dos projetos protocolados (68 projetos) nos municípios sobre os temas buscam restringir o acesso ao direito ao aborto legal, seja por influenciar o debate público nesse sentido ou por propor alterações legais que dificultam o acesso ao procedimento.

Entre os que buscam influenciar o debate público, somente dois projetos são favoráveis ao direito, que fazem alusão a uma data pela legalização do aborto ou por conscientização sobre aborto legal: o PL 2357/2023 no Rio de Janeiro, em tramitação, e o PL 327/2021 em Salvador, que foi arquivado.

É em Fortaleza, no Ceará, onde atua o vereador campeão de projetos de lei que buscam restringir o direito ao aborto do Brasil. Jorge Pinheiro (PSDB) apresentou sete das 13 matérias legislativas sobre o tema, entre projetos de lei e projetos de indicação.

Uma das estratégias utilizadas pelos parlamentares de extrema direita é a apresentação de matérias como uma indicação, que são uma sugestão ao Poder Executivo. Uma vez aprovada a indicação pelo Plenário, quem ocupa o executivo municipal pode devolver a ideia para a Câmara, como um Projeto de Lei de autoria do Executivo, o que acelera a tramitação da proposta.

Campanhas antiaborto

Os vereadores antiaborto buscam crescimento político entre os eleitores com a pauta. Jorge Pinheiro foi eleito pela primeira vez em 2016 e chega ao seu terceiro mandato em 2025, com quase o dobro de votos da primeira eleição. O vereador cearense é advogado, membro da comunidade católica Shalom e se identifica como um “defensor da vida e da família”. Com uma cruz no peito, ele comemora, no seu Instagram, a aprovação de uma emenda à Lei Orgânica do Município, em dezembro de 2024, que estabelece a prioridade de investimento em políticas públicas “entre a concepção e os 6 anos de idade”.

Colega de Jorge na Câmara Municipal de Fortaleza, Adriana Gerônimo (PSOL) considera grave essa alteração na Lei Orgânica. A vereadora argumenta que a aprovação vai dificultar o acesso ao aborto legal por adolescentes e vítimas de estupro.

Um dos projetos apresentados pelo vereador, a ‘Semana pela Vida’ previa a realização de “campanhas de informação a respeito dos malefícios médicos e psicológicos da utilização de anticoncepcionais”. Projetos de lei idênticos a esse foram localizados pela reportagem em outras duas cidades do interior do país: Tabuleiro do Norte (CE) e Sete Lagoas (MG).

A proposta  chegou a ser sancionada na capital cearense em setembro de 2021, mas o decreto de regulamentação publicado pelo então prefeito, José Sarto (PDT), frustrou o projeto inicial.

Depois de pressão popular e midiática, o decreto determinou que a programação da ‘Semana pela Vida’ deve incluir atividades informativas a respeito da gravidez na adolescência, sobre métodos contraceptivos de longa ação e conhecimentos sobre interrupção legal da gestação.

O gabinete do vereador Jorge Pinheiro (PSDB) foi procurado para prestar esclarecimentos à reportagem, mas não quis dar entrevista.

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