As vítimas da pílula anticoncepcional, por Cristiane Segatto

10 de outubro, 2014

(Época, 10/10/2014) Os médicos de diferentes especialidades prestariam um grande serviço aos pacientes se falassem a mesma língua. Se você tem mais de um médico, provavelmente já enfrentou o dilema de decidir o que fazer com a prescrição de um remédio que um receita e o outro condena. É comum ir ao ginecologista e sair com a recomendação de uma pílula anticoncepcional – apesar da existência de muitas outras formas de evitar a gravidez. Nos últimos anos, a pílula deixou de ser vista apenas como método contraceptivo. Virou a primeira escolha dos médicos para tratar acne, inchaço, TPM e outros problemas.

Muitos profissionais nem sequer perguntam se a paciente fuma, apesar de os estudos demonstrarem que a combinação de pílula e cigarro aumente em oito vezes o risco de acidente cardiovascular (AVC). Isso não é brincadeira. O sangue dos fumantes torna-se mais propenso à formação de coágulos e a nicotina enrijece as artérias que irrigam o cérebro. Logo, mulheres que fumam não devem tomar pílula. Quantas sabem disso?

Enquanto os ginecologistas receitam anticoncepcionais a mulheres que nunca sofreram danos provocados pela pílula, os neurologistas lidam com as consequências da prescrição pouco cuidadosa. As tragédias sobram para eles. Foi o que aconteceu com a professora universitária Carla Simone Castro, de 41 anos.

Ela nunca gostou da ideia de ingerir hormônios. Começou a tomar pílula pela primeira vez em janeiro deste ano. O medicamento Yasmin, da Bayer, foi receitado por uma ginecologista de Goiânia para controlar cólicas provocadas por miomas uterinos. No mês seguinte, Carla começou a sentir dores de cabeça. Passou a carregar paracetamol na bolsa. Nos meses seguintes, procurou outros médicos. Ouviu que as dores eram provocadas por sinusite, crise alérgica, enxaqueca, ansiedade… mas o problema era muito mais grave. Há 60 dias, Carla sofreu uma trombose cerebral que provocou um AVC. Foi salva por pouco. Se o atendimento demorasse mais 15 minutos, hoje poderia estar em coma ou morta.

A professora ficou estrábica e com a visão duplicada. Passou três dias sem enxergar quase nada. Hoje está muito melhor, mas ainda não recuperou a visão periférica. Os movimentos do lado direito do corpo, prejudicados durante algum tempo, também foram recuperados.

Carla não fuma, não é diabética, não é obesa. Não tem nenhum outro fator de risco capaz de justificar o dano sofrido. A única explicação dos médicos para o que aconteceu é o uso de pílula. Carla precisará tomar anticoagulante, anticonvulsivante e antidepressivo por tempo indeterminado.

Enquanto estava no hospital, ainda com um tampão sobre o olho, ela decidiu gravar um vídeo para contar aos amigos o que havia acontecido.

O depoimento, publicado pelos alunos dela nas redes sociais, teve mais de dois milhões de acessos e 140 mil compartilhamentos. Ao expor sua história, Carla passou a ser procurada por mulheres com casos semelhantes. Juntas, criaram uma página no Facebook – “Vítimas de anticoncepcionais. Unidas a favor da vida”. Em poucas semanas, surgiram centenas de relatos de graves efeitos adversos.

A Anvisa informa que, entre 2009 e 2014, recebeu apenas três registros de problemas semelhantes. Nesta semana, Carla protocolou uma reclamação no Ministério Público Federal porque ela e outras mulheres não conseguiam registrar os casos no sistema online da agência. A movimentação começa a surtir efeito. O sistema voltou a funcionar. Há um link para registrar as ocorrências. Os médicos não são obrigados a notificar os casos – e raramente o fazem. Por isso, é fundamental que as vítimas ou suas famílias notifiquem as autoridades.

Não se trata de demonizar a pílula anticoncepcional ou de negar os benefícios que ela trouxe à humanidade. Uma gravidez indesejada, principalmente entre as jovens de baixa renda, costuma ter efeitos terríveis sobre a saúde e a trajetória educacional e profissional da mulher. O ponto central deste texto é outro.

Na maioria dos casos, a pílula é segura. Se não fosse assim, todos nós conheceríamos alguma moça que teve um AVC depois de tomar anticoncepcional. Mas as que usam esse tipo de contracepção precisam saber que os hormônios aumentam a capacidade de coagulação do sangue. O mesmo pode ocorrer quando a mulher faz reposição hormonal na menopausa. Quem toma pílula ou faz reposição hormonal está mais sujeita a sofrer uma trombose (formação de coágulos no interior de um vaso sanguíneo).

E a trombose pode levar ao AVC. Em 2011, a Yasmin e outras pílulas que contêm drospirenona estiveram no centro de um debate promovido pela FDA (a agência americana que regula fármacos e alimentos). Alguns estudos recentes sugerem que essa substância piora a circulação do sangue e aumenta em até duas ou três vezes o risco de trombose. Segundo a FDA, ao menos 190 mulheres haviam morrido nos Estados Unidos após tomar pílulas à base de drospirerona. O órgão estimou que, a cada ano, dez em cada 10 mil mulheres podem ter um coágulo provocado por essas drogas. Quem toma as pílulas mais antigas também está sujeita ao problema, mas o risco é inferior. Ocorre em seis mulheres a cada 10 mil.

Estudos conduzidos pela empresa fabricante não revelaram aumento do risco de formação de coágulos. Apontar esse tipo de risco é especialmente difícil porque eles também podem ser decorrência de fatores ligados à história familiar ou ao estilo de vida – como o tabagismo e a obesidade. Os cientistas da agência ressaltavam que nenhum dos estudos existentes era capaz de dar uma resposta definitiva sobre o risco dessas pílulas. Depois de muita discussão ao longo dos últimos anos, a agência decidiu manter essas pílulas no mercado, mas os consultores consideraram que as atuais informações dadas aos consumidores não refletem os reais riscos.

A Bayer, que vende a Yasmin no Brasil, reafirma a segurança do produto em um comunicado. “A Comissão Europeia emitiu, em 16 de janeiro de 2014, sua decisão final no processo de avaliação sobre contraceptivos hormonais combinados, respaldando o posicionamento da Bayer de que não existem novas evidências científicas que mudariam a avaliação positiva de benefício-risco de anticoncepcionais hormonais combinados” (…) “A decisão da Comissão Europeia seguiu as recomendações do Comitê de Avaliação do Risco em Farmacovigilância (PRAC) e do Comitê dos Medicamentos para Uso Humano (CHMP), concluindo que os benefícios dos contraceptivos hormonais combinados na prevenção da gravidez não planejada continuam a superar os riscos e que a possibilidade de tromboembolismo venoso (TEV), associada ao uso de contraceptivos hormonais combinados, é pequena.”

A reivindicação de Carla é das mais razoáveis. “Não pretendo tirar o produto do mercado nem pleitear uma indenização”, diz ela. “Minha luta é por informação. Os médicos têm que falar claramente sobre os riscos para que a mulher possa decidir”. Um exemplo do que poderia ser feito? Mulheres portadoras de trombofilia, uma condição genética que favorece a formação de trombos, não podem tomar pílula. A informação está na bula dos produtos. Raros são os médicos que pedem o exame.

Quando publicou o vídeo, Carla era uma só. Hoje representa muitas. As redes sociais acabaram com o isolamento e deram poder aos pacientes. O grupo quer a inclusão de um aviso sobre o risco de trombose nas embalagens das pílulas e a notificação obrigatória de casos graves pelos médicos. Seria uma grande conquista.

Cristiane Segatto

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