(BBC Brasil, 05/02/2016) “É muito mais fácil para governos e para o Legislativo prestarem atenção na fala da ONU no que na destas mulheres. A voz das Nações Unidas fala mais alto”, diz socióloga Jacqueline Pitanguy
O comunicado divulgado pelas Nações Unidas nesta sexta-feira, defendendo a descriminalização do aborto em países que enfrentam a epidemia de zika vírus, “legitima o discurso de milhares de mulheres que vêm pedindo o mesmo há décadas no Brasil”, diz a socióloga Jacqueline Pitanguy, cujo currículo inclui participação em diversas negociações e conferências na organização.
“A ONU não pode interferir em governos, os países são soberanos”, afirma. “Entretanto, há uma questão que se chama de legitimidade ao argumento: o discurso que diferentes grupos de mulheres no Brasil vêm levantando há tantos anos ganha peso após um comunicado como este.”
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Para Pitanguy, a fala do Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos representa um “avanço fundamental na luta política”, mas usa os mesmos argumentos de grupos que defendem o direito de escolha pelo aborto no país.
“É muito mais fácil para governos e para o Legislativo prestarem atenção na fala da ONU no que na destas mulheres. A voz das Nações Unidas fala mais alto”, diz.
Em meio à epidemia de zika em diversos países, o Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos defendeu, nesta sexta-feira, que os direitos reprodutivos da mulher sejam garantidos, incluindo a descriminalização do aborto.
Em Genebra, o comissário de Direitos Humanos da ONU, Zeid Ra’ad Al Hussein, disse que “leis e políticas que restringem mulheres a estes serviços devem ser urgentemente revistas em linha com os direitos humanos para garantir o direito à saúde para todos na prática”.
O posicionamento da ONU surge em um momento em que a discussão sobre o aborto legal no Brasil ganha fôlego e provoca opiniões distintas em diferentes setores da sociedade.
Zika e a saúde mental da mãe
Para Jacqueline Pitanguy, um dos principais pontos do comunicado diz respeito à saúde física e mental da mãe.
Cecille Pouilly, porta-voz da ONU, disse à BBC Brasil que a organização recomenda que o aborto seja permitido em cinco diferentes situações: “Casos de estupro, incesto, risco à saúde física e mental da mãe e também em casos de bebês deficiências consideradas graves”, listou.
“O risco à saúde da mulher não é considerado no Brasil. Se tomamos o risco à saúde como a OMS (Organização Mundial da Saúde) define, existem o risco à saúde física e também emocional”, afirmou Pouilly.
“O risco à saúde emocional da mãe é enorme nesta epidemia de zika no Brasil por conta da tensão e do pânico criado em torno da microcefalia. As mulheres grávidas estão vivendo um enorme risco emocional pelo risco da microcefalia”, afirma Pitanguy. “Não se trata de eugenia – é o direito à escolha: se ela quiser levar a gravidez diante, ela levará.”
A especialista também classifica o comunicado como “cuidadoso”.
“O tom está correto. Vem de um órgão internacional que lida com governos e a gente sabe que a linguagem é política”, diz.
Para Pitanguy, o texto das Nações Unidas se dirige claramente a países que ainda não consideram os riscos à saúde física e mental, nem as deficiências fetais consideradas graves.
“O comunicado menciona com muita propriedade a ausência de acesso a métodos contraceptivos. Dá uma cutucada também nos governos que pediram que se posterguem gestações. A ONU fala em ampliação de direitos, não na redução deles”, diz.
O comissário das Nações Unidas, em seu pronunciamento, afirmou que “o conselho de alguns governos para mulheres atrasarem gestações ignora a realidade de que muitas mulheres e meninas simplesmente não podem exercer controle sobre a maneira, o momento e as circunstâncias em que se tornam grávidas, especialmente em locais onde a violência sexual é tão comum”.
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Regulamentação
As Nações Unidas falam em descriminalização do aborto em seu comunicado.
Segundo Pitanguy, a descriminalização resulta em sua retirada do Código Penal e em uma regulamentação – inclusive registrando em quais as situações ele ainda deve ser proibido. Questionada sobre quais situações seriam estas, a socióloga mencionou a obrigação pelo aborto, que até hoje ocorre em algum países.
“Jamais uma mulher pode ser obrigada a fazer o aborto, em qualquer situação. Outro caso que deve ser criminalizada são os chamados “aborteiros”, máfia de pessoas que não têm formação adequada e oferecem serviços precários e perigosos.”
Hoje, com a criminalização no Brasil, seriam estas pessoas as responsáveis pela maioria dos abortos clandestinos, especialmente em periferias.
“Qualquer regulamentação do aborto é condicionada, em todas partes do mundo, à medida que a gravidez avança. Quanto mais tempo, mais condições. Na maioria dos países, o procedimento é permitido até 12 semanas sem maiores problemas. À medida em que a gravidez avança, surgem outros permissivos, como os determinantes para a saúde da mãe.”
Atual coordenadora executiva da Cepia, organização que trabalha pelos direitos humanos e cidadania de grupos tradicionalmente excluídos, Pitanguy participou ativamente da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD), da ONU, e de projetos conduzidos pela ONU Mulheres, como o documento Progresso das Mulheres no Brasil 2003–2010, sobre igualdade de gênero no país.
Acesse no site de origem: ‘Voz da ONU sobre aborto é mais alta que a de milhares de mulheres’, diz socióloga (BBC Brasil, 05/02/2016)