(O Globo, 29/09/2014) A América Latina destaca-se pela concentração de mulheres presidentes, embora os países da região sejam reputados como bastiões do machismo. Disputas eleitorais polarizadas por candidatas como a socialista Michelle Bachelet e a conservadora Evelyn Matthei no Chile, e agora, no Brasil, entre Dilma e Marina, oriundas de movimentos progressistas, são inéditas e renovam expectativas sobre a redução da desigualdade entre gêneros. A presença feminina nos principais cargos políticos de nações que ainda não superaram barreiras imprescindíveis para a saúde das mulheres pode contribuir para superar tabus e preconceitos, e evitar violências e mortes.
As circunstâncias das trágicas mortes de duas jovens que procuraram clínicas de aborto inseguras no Rio de Janeiro contrariam ideias muito difundidas sobre a idade e motivação para o aborto voluntário. Ambas eram mães, estavam no centro do período reprodutivo, arriscaram-se para tentar manter a união conjugal e participação no mercado de trabalho. Complicações decorrentes do uso de medicamentos para induzir o aborto, sem acompanhamento médico, e métodos mecânicos, progressivamente mais perigosos, praticados em condições precárias e por pessoas sem qualificação técnica, constituem a terceira causa de mortalidade materna no Brasil.
Segundo a Pesquisa Nacional de Aborto realizada em 2010, ao completar 40 anos, uma em cada cinco brasileiras terá se submetido a aborto. A segunda constatação do estudo é que essas mulheres são pessoas comuns: seus perfis são similares aos de tantas outras mães, irmãs, filhas, amigas ou vizinhas de todas as classes sociais. A procura pelos abortos acompanha a composição religiosa do país: maioria foi realizada por católicas, seguidas por protestantes e pentecostais e, finalmente, por mulheres de outras religiões ou sem religião.
Atualmente, o aborto é considerado pelo Código Penal como crime contra a vida, passível de detenção por três anos. Mas as restrições legais não reduzem a busca de alternativas para não levar adiante gestações não planejadas. As graves consequências dos abortamentos sucedidos por hemorragias e perda da capacidade de ter filhos no futuro e mortes são problemas de saúde pública. Ser a favor ou contra o aborto não salva vidas, o que precisa ser decidido é se as mulheres que o realizam devem ser condenadas, presas e expostas a riscos desnecessários.
Apesar da visibilidade e da magnitude dos problemas relacionados com os abortos inseguros, as duas candidatas mais bem situadas nas pesquisas de opinião não os mencionam ou, quando muito, emitem vagas opiniões pessoais sobre o tema. Na contabilidade dos votos, o posicionamento sobre assuntos polêmicos relacionados com segmentos populacionais historicamente oprimidos rende pouco ou até causa prejuízos. A inclusão do tema dos direitos reprodutivos nas plataformas de candidatos como os do PV e do PSOL faz muita diferença, mas não é suficiente para espanar o obscurantismo. A sombra estabelecida pelas posições de candidatos proporcionais, homens das mais diversas filiações políticas, que se declaram, sub-repticiamente, antiaborto ainda é maior do que a perspectiva de uma discussão aberta.
A estrada é longa, mas não será percorrida sem que se inicie a caminhada. A estratégia de apostar nas medidas administrativas e legais para assegurar direitos básicos às mulheres não decolou. As imensas dificuldades para a efetivação da legislação que normatiza o aborto para gestantes com risco, vítimas de estupro e feto anencefálico não deixam dúvidas sobre a premência do debate público.
O segundo mandato de uma presidente mulher no Chile será marcado pela nomeação de uma comissão integrada por estudiosos e representantes da sociedade civil para apresentar alternativas à privatização do sistema de saúde e envio para o Congresso de um projeto de descriminalização do aborto. As Nações Unidas lançaram o movimento HeForShe (EleParaEla) pela igualdade de gênero após a constatação da importância das lutas feministas em diversas partes do mundo e a necessidade de unificar esforços de solidariedade e reunir a metade da Humanidade para apoiar a outra.
As duas brasileiras candidatas favoritas à Presidência possuem larga experiência pessoal e política sobre saúde. Escapar das tensões que envolvem os direitos reprodutivos diretamente endereçados a elas, por serem mulheres, não concede credenciais adicionais na demonstração de conhecimento sobre os problemas econômicos. Pelo contrário, a participação de mulheres na política brasileira potencializa a compreensão da vida como ela é e as possibilidades da solidariedade social. A autonomia ou não do Banco Central não é mais relevante do que a das mulheres.
Modernidade e democracia não são apenas palavras destituídas de sentido de mudança ou apenas cifras monetárias. O que está em jogo não são somente os inquestionáveis avanços decorrentes do aumento das oportunidades de emprego, da renda, melhor capacitação profissional e ameaças de retrocesso de políticas que reduziram as desigualdades. Existe uma interrogação adicional e legítima sobre os horizontes de efetivação dos direitos sociais. O saldo das contas após as eleições, expresso na devolução do apoio a empresários da saúde, financiadores de campanhas, e àqueles que exigem compromissos de omissão sobre os direitos das mulheres, não tem sido positivo para o SUS e para a defesa da vida.
Ligia Bahia é professora da UFRJ
Acesse o PDF: Duas mulheres e um impasse, por Ligia Bahia (O Globo, 29/09/2014)